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Durante anos, Petrix Barbosa precisou engolir a seco a cada vez que os traumas da infância vinham à mente. Ao tentar seguir em frente e buscar o sucesso na carreira que escolheu, o ginasta quis deixar o passado para trás. Agora, porém, decidiu falar. Ao acusar o técnico Fernando de Carvalho Lopes de uma série de abusos quando ainda era uma criança ao lado de ao menos outras 41 vítimas, Petrix busca justiça. Apesar do longo tempo para fazer a denúncia, o atleta diz que pensava não ter forças lá atrás para conseguir mudar a situação.
“Eu sabia de boatos, de meninos de orfanatos, que eram amigos, que tinham o mesmo problema. Mas como você vai fazer alguma coisa? Não sei. Não sabia o que fazer durante toda a minha carreira. Eu pensava: “Agora não posso porque tenho esse momento. Deixa para lá, agora já não é problema meu”. Mas, hoje em dia, que eu já sei de muito mais coisas que aconteceram, coisas muito mais absurdas, pior do que comigo, talvez se eu tivesse ficado mais tempo teria acontecido comigo, sem dúvidas. Até onde eu permitisse ou até onde eu não cometesse uma loucura como outros atletas chegaram a fazer. Até minha família, meu pai. E eu consegui evitar isso a tempo, consegui tocar a minha carreira. E sei que nem todo mundo conseguiu. E vi que muita gente não conseguiu tocar a carreira, gente até mais talentosa que eu, ou com potencial gigante”.
Os abusos, segundo Petrix, começaram quando ele tinha 10 anos. Continuaram até ele sair do Mesc, em São Bernardo do Campo, aos 13 anos, e passar a treinar em São Caetano. Petrix lamenta que o caso tenha demorado tantos anos para vir à tona. Mas diz que não teria conseguido evitar que o mesmo acontecesse com outras crianças.
“Não adianta falar que eu poderia ter tentado salvar essas crianças, tentado fazer algo na época, porque nada poderia ter acontecido com ele. Por mais que eu fizesse barulho na época, que eu falasse, não seriam tantas vítimas, eu não teria tanta força. Eu seria mal-interpretado, mal julgado. Eu não tenho como mudar o que aconteceu. Eu já pensei em me culpar por isso. Porque eu talvez tenha sido o pioneiro, o primeiro a ser molestado por ele. Tanto que todo mundo que me conhece e que treinou com ele sabe e comenta sobre. Mas é uma coisa que eu não sei. Eu sabia que era grande, que estava aumentando, mas eu não queria saber. Se você chegasse para mim, não queria tocar nesse assunto. Que tipo de pessoa que esse cara é? E a conclusão, todo fim de noite, era que o mundo dá voltas. E Deus tá olhando e sabe o que faz. Não sei se chegou o tempo dele já, mas já deveria ter chegado faz tempo”.
O isolamento das vítimas, ele diz, é normal. Ao passar pelo trauma, Petrix acredita que a maioria preferiu engolir a dor e seguir em frente.
“Mas ninguém quer ter nada com isso. E a culpa não é deles. Mas quem passou não quer saber mais disso. Nunca mais. Não quer mais olhar, falar com ele. Essa energia que eu tenho engasgada desde que saí de lá. Porque eu nunca toquei nesse assunto, nunca falei. As únicas pessoas no mundo com quem falei sobre isso foram as pessoas que já passaram por isso. Mas desde que eu saí, nunca mais falei. Até conheço, mas não falava. Quem passou por isso, não quer passar mais, de jeito nenhum”.
Petrix lembra que os abusos afetaram a vida de várias crianças para sempre. Em um esporte tão exigente, muitos sofreram e não conseguiram seguir adiante.
“Algumas pessoas mudaram a opção sexual sem nem saber qual era a sua opção, não tiveram a livre escolha. Outras pessoas entraram em depressão, outras pessoas entraram para as drogas. Eu não sei quantas pessoas mais, quantas situações vão aparecer. Por isso eu acho hoje em dia tão importante falar, contar mais do que eu passei, mais do que eu lembro. Muitas pessoas podem aparecer, muitas pessoas que talvez ficassem para sempre com isso guardado. Hoje em dia, podem ter a chance de valer a pena todo o sofrimento que passaram e para que nenhuma criança passe mais por isso.
O trauma também afetou Petrix. Diante dos abusos, o ginasta se fechou. Segundo ele, com um desespero de viver tudo no limite.
“Isso foi me traumatizando, me deixando rebelde em algumas situações, com uma ansiedade imensa na minha vida para tudo. Com uma ansiedade em ser feliz, de dizer sim para tudo. Nunca tive problemas com drogas, nada disso. Eu sempre tive vontade de viver, de fazer tudo de viver aquilo naquele momento porque talvez seja um desespero que eu tinha por conta disso. Todas as vezes que eu não tinha a minha escolha que eu vejo o quanto me afetou. E eu achava que não me afetava, que era forte. Posso não ter entrado em depressão, não ter tomado remédio, não ter me suicidado, mas isso me afetou e me afeta muito. E me afetou o meu futuro profissionalmente”.
Em uma investigação que durou quase quatro meses e com depoimentos de mais de 80 pessoas, 42 ginastas e ex-ginastas alegam terem sido vítimas de algum tipo de abuso físico, moral ou sexual por Fernando de Carvalho Lopes. O técnico fez carreira no Mesc (Movimento de Expansão Social Católica), clube particular da cidade de São Bernardo do Campo, em São Paulo, e por dois anos fez parte da comissão técnica da seleção brasileira masculina de ginástica. Ele treinava Diego Hypolito e Caio Souza até ser afastado da equipe olímpica um mês antes dos Jogos Rio 2016, quando foi denunciado por um menor de idade.
Globo Esporte
OPINIÃO - 26/11/2024