João Pessoa, 12 de maio de 2018 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Gritos, bofetadas, socos, um espancamento sem fim e o mesmo pedido a cada surra: “Para pai, por favor”. Assim era a dura rotina que Raíssa Souza de Lima viveu até os 16 anos na favela Rubem Vaz, no Complexo da Maré. O pai, alcoólatra, batia na mãe quase diariamente, por motivos torpes, como uma simples louça não lavada ou o tempero da comida que não lhe agradava.
Era tanta violência que a jovem aprendeu artes marciais com um único objetivo: defender a matriarca do seu espancador. A raiva do pai era tamanha que a carioca até pensava em matá-lo. Mas com a ajuda da Organização Luta Pela Paz, uma ONG que atua na comunidade desde 2000, Raíssa afastou a raiva e se inspirou na mãe,
Hoje, aos 22 anos, a estudante de educação física é uma das atletas amadoras da Primeira Corrida da Mulher do Complexo da Maré, que acontece hoje, a partir das 8h, com o percurso de 3km. Será na mesma comunidade onde Marielle Franco iniciou a carreira de ativista e política, que foi interrompida há quase dois meses em um brutal assassinato, na qual também morreu o seu motorista Anderson Gomes. Na véspera do Dia das Mães, nada mais justo do que elas realizarem um desejo juntas.
“É a primeira vez que vamos correr juntas, porque ela odeia esporte (risos). Estou empolgada, porque deve ser a coisa mais linda vê-la correndo”, se derrete a jovem.
O gosto pelo esporte surgiu justamente aos 9 anos, quando Raíssa viu uma luta de boxe de mulheres pela TV. Um estalo deu na cabeça da pequena, muito madura para idade: “Cara, eu quero fazer luta”. O pai a levou na Vila Olímpica sem imaginar que o alvo do interesse dela por saber golpes era contra ele, para defender a mãe.
Então, começou no karatê em um projeto social, mas ficou violenta. Bateu em um primo durante uma briga e foi expulsa. Descobriu, então o jiu-jítsu, para aprender quedas e ficou dos 11 aos 15 anos. Na mesma época, seus pais se separaram definitivamente.
“Eu e meu pai já brigamos em algumas das vezes que ele bateu na minha mãe. Mas ele, homem e mais forte que uma criança, me enforcou e me soltou. Mas nunca me bateu. O alvo dele era ela”, relembra a carioca, que ainda tem uma irmã, Andressa, de 16 anos.
O maior medo de Raíssa era que a mãe fosse morta. Assim, ela poderia de alguma forma matar o pai por vingança. Mas o destino a colocou na ONG Luta pela Paz, onde ela passou a ter acompanhamento de uma psicóloga e uma assistente social, além do esporte, com o boxe e, depois, o judô. Isso a fez deixar de ter mágoa do pai e abandonar o desejo de atacá-lo. Mas não apagou da lembrança os dias difíceis e as imagens dos espancamentos.
“Não tenho mais mágoa. Mas, às vezes, eu lembro da minha mãe dormindo, ele ia lá acordar ela para bater. Ela acordava assustada. Quantas vezes ele correu atrás dela com um facão para matá-la?” conta.
Atualmente, Raíssa dá aulas de judô em cinco escolinhas na Maré, uma em Ramos, uma no Andaraí e na ONG Luta pela Paz. O sonho? Terminar a faculdade, dar uma casa para mãe longe da favela e continuar ensinando mais meninos e meninas com o esporte.
“O esporte me ajudou muito. Eu imaginava que a minha mãe fosse morrer na mão do meu pai, e eu ia tentar matá-lo de alguma forma. Com o esporte, a assistência social e a psicologia, eu melhorei muito. Hoje em dia, eu nem penso mais em bater no meu pai. Minha mãe nunca teve ideia disso (de que ela aprendeu a lutar para bater no pai). Nunca perguntei e nunca falamos sobre isso, nem quando ela soube”, disse.
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OPINIÃO - 26/11/2024