João Pessoa, 07 de janeiro de 2019 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Quase um mês após eclodirem na imprensa denúncias de abusos sexuais de mulheres contra João de Deus, parte dos moradores de Abadiânia (GO) ainda mantém silêncio sobre as suspeitas em torno do médium por receio de represálias. Segundo as autoridades, esse medo ajudou com que as denúncias demorassem anos a aparecer. Quem ousa falar sobre o assunto, teme por ameaças.
A pouco mais de 100 quilômetros do Distrito Federal, o município é cortado pela BR-060. No lado direito da rodovia que liga o DF a Goiânia, fica a Casa Dom Inácio de Loyola. Em torno dela, há dezenas de hotéis, pousadas e lojas de artesanato, com atendimento voltado para o turismo religioso ao público-alvo estrangeiro. Desde o escândalo, os habitantes sentem o reflexo da ausência do seu principal nome na rotina da cidade e, principalmente, na economia.
Do outro lado da rodovia, ficam os principais serviços à população e negócios que se desviam do nicho que impulsiona o desenvolvimento local. Lá também estão a casa residencial do médium e a instituição filantrópica mantida por ele.
Um vendedor que trabalha nas redondezas do centro espiritualista coloca-se na defensiva, mas responde ao questionamento da reportagem sobre as denúncias. “Eu não falo nada. Quando houver lei neste país e bandido ficar preso, posso falar”, afirmou. Outros vizinhos da loja se negaram a falar sobre a situação.
A poucos metros, na lanchonete da Casa Dom Inácio, funcionários cochicham: “Viu a reportagem sobre o patrão?”, referindo-se sobre a saída de João de Deus para atendimento hospitalar, em 2 de janeiro. O assunto é cortado rapidamente. A saúde frágil do médium, de 77 anos, é um dos principais argumentos da defesa para que ele seja beneficiado por um habeas corpus, ainda sob análise no Supremo Tribunal Federal (STF).
Vítimas de abusos e testemunhas continuam sendo ouvidas pelo Ministério Público de Goiás (MPGO), em Goiânia. Mais de 100 relatos já foram oficializados pelo órgão até 28 de dezembro, e não há previsão para que o trabalho investigativo termine.
Com a primeira denúncia oferecida à Justiça pelo MPGO, João Teixeira de Faria, o João de Deus, pode ser condenado a até 42 anos de reclusão por dois crimes de estupro de vulnerável e dois de violação sexual mediante fraude. Autoridades policiais chegaram a apontá-lo como líder de uma organização criminosa, após a apreensão de cinco armas de fogo e o equivalente a R$ 1,6 milhão na residência onde mora com a esposa, no centro da cidade.
Ameaças
Uma pessoa que frequentou o seio familiar do médium disse que, após um desentendimento com um dos membros do centro, precisou mudar de estado por medo de ameaças. Durante uma conversa com o Metrópoles, ela disse que boletins de ocorrência registrados sobre a ocasião desapareceram sem explicação.
“Todo mundo sabe o poder e a influência que tem o seu João. Apesar de ele estar preso, tenho extremo receio”, disse. “As pessoas fingem que não sabem, que não veem. Comentário sempre houve, sobre muita coisa, mas nunca foi provado”, complementou.
Moradora de Valparaíso de Goiás (GO), uma das vítimas que denunciou os abusos teme que ele saia da prisão. Anos depois, as marcas do crime permanecem na vida da mulher de pouco mais de 40 anos que frequentava a Casa Dom Inácio semanalmente.
“Tem dias que dá um desespero, uma tristeza, uma agonia de estar revivendo isso tudo. Ao mesmo tempo, a gente tem esperança por Justiça. Estou colocando para fora o que guardei por 19 anos. Ele brincou com a minha fé, debochou de mim. Graças a Deus esse homem foi descoberto”, desabafou.
Tenho medo. Quem tem dinheiro consegue de tudo. Eu não acho justo que ele fique livre”
Vítima de abuso sexual
Outra vítima, de Brasília, disse que confia no trabalho do Ministério Público, por isso acredita que João de Deus não ficará impune. “Eu acho que não dá para ele simplesmente voltar para casa. Eu sei que os advogados vão fazer de tudo para que isso aconteça, mas para mim não faz o mínimo sentido. São mais de 40 anos cometendo o mesmo tipo de crime, de uma maneira padronizada, contra muitas mulheres”, disse.
As duas mulheres entraram em 2019 com expectativa que a história de sofrimento ganhe um ponto final. “Eu comecei o ano mais leve, mais confiante de que as coisas vão voltar ao normal na minha vida. São mais de 10 anos esperando que alguma coisa fosse feita contra ele diante de tudo que eu vivi. Por um lado, é um grande alívio que esse momento tenha chegado”, comentou uma delas.
Denúncias
A promotora Gabriella de Queiroz, integrante da força-tarefa montada pelo MPGO para receber e investigar denúncias contra o médium, afirmou que o poder de João de Deus impediu que muitas vítimas revelassem os fatos ao longo dos anos. O caso mais antigo apresentado ao órgão ocorreu em 1975 e o mais recente, em maio de 2018.
“Era um contexto de ainda mais medo, de ainda mais receio, sobretudo em face de uma figura com tamanho poderio, não só religioso. Poderio financeiro, ligado à influência junto a políticos, pessoas famosas, à comunidade local “, conta promotora Gabriella de Queiroz.
Metrópoles
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