João Pessoa, 29 de maio de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Percorro o bairro do Cabo Branco de bicicleta. Não encontro nada mais do que uma calmaria assustadora e ruas vazias, como se todos os moradores tivessem dado no pé. Passo pelo velho prédio Bokomoko. Lá longe as árvores da vida da Avenida Beira Rio e não vejo nada no bar da esquina. Um samba acabado.
Como um protesto, minha palavra de espanto e eu não sei se fui “coach”, que servisse para nada mais do que acentuar a geografia da minha solidão. Estou a imaginar abraços. Qualquer prazer já não satisfaz. Uma fotografia desfocada e sem detalhe proporcionada pelo estranho contraste entre os dias comuns e o dia de hoje, de amanhã ou o que virá depois. Teremos Primavera? Poucas pedaladas me traria de volta à realidade. Acho que não.
A falta da correria abranda até parecer que estou inerte, triste, a flutuar, com a brisa de Johnny Alf, eu e a brisa, a brisa e eu. No espelho do banheiro esbarro-me na necessidade de me barbear. Meu cabelo está enorme. Por caridade digam que a pandemia acabou, que a moça está me esperando com suas tesouras. Minha mulher disse que cabelo grande é bonito. Ela pensa que eu ainda sou aquele cabeludo que apareceu em sua rua, no Jardim das Acácias. Eu tenho uma saudade inacabada.
Continuo dando conta dos trampos, barrancos e aos poucos boto a cabeça no sol, sem ordem e progresso. Vejo seres malditos dizendo horrores na televisão. Ciro, Cica, Círios e Nazaré e o império da lei há de chegar no coração do Brasil. Mendigos jovens solitários passam bêbados na minha rua, que eu discreto ouso anunciar. Meu destino é o mar.
Por esses dias não demonstro subliminar obsessão pela multidão. Nunca gostei de multidão, talvez, por esta ser uma coisa da transformação da civilização, não unicamente sua, mas acho que o grande problema do planeta é que tem gente demais.
Quanto a mim, a multidão não me interessa mais no sentido que faço parte dela, sem as sacadas inteligentes ou niilismos, apenas como mais um peão da palavra, de um percurso mais ou menos fixo, mas tento esquecer em que ano estamos. Em que ano estamos?
Estou andando em círculo. Às vezes me observo distraído e sem qualquer interesse, apenas no trabalho. Foco numa canção morta de Luiz Melodia, “se inteire da coisa sem haver engano”, de igual maneira que distraidamente e sem qualquer interesse a mim ou aos outros, eu antevejo outra sina.
Sim, um poema morto. Em ‘A une Passante’, Baudelaire encanta-se por uma mulher que passa por si na rua sem jamais reconhecer a impossibilidade de um futuro reencontro. Teremos outros reencontros, cafés e muitos delírios, Diva Medeiros? Nenhuma mulher me basta.
O amor não tem nada a ver com à primeira vista, sequer de uma conquista. O amor vem dos cordões umbilicais mais distantes. Você pode amar ao contrario, até à ultima vista, parado em si mesmo feito um condenado. Nesses dias preso, falei para minha mulher coisas, considerações e receios que se encaixam no desvario de outros tempos.
Fluxos, refluxos, dor a coluna, movimentos repetidos. Onde andará meu velocípede? O centro da cidade fugiu dos meus olhos, estou longe das casas em ruínas, do mercado de frutas, dos bêbados e das putas. A vida é imparável e impessoal, esse colosso monstruoso da natureza humana.
Ainda não anoiteceu. Ligo o som, escuto Beethoven e penso no tempo de antes de eu nascer. A solidão é o como vento. Às vezes abraça a gente. Não pertenço a nenhum lugar. Até terça.
Kapetadas
1 – Acordei agora, é verdade que a imprensa pode criticar tudo mas tá proibido criticar a imprensa é?
2 – Não suporto besteirol e essas tantas ideias de jerico.
3 – Som na caixa: “Lava roupa todo dia, que agonia”, Luiz Melodia.
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TURISMO - 19/12/2024