João Pessoa, 06 de junho de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Acordo, olho o celular e são 8h12. A cama já está solitária, Hércules, meu esposo, hoje saiu bem cedo para o trabalho. O sono ainda teima, mas me recuso a fechar os olhos novamente. Faço uma breve oração, agradeço pelo dia e peço proteção. Permaneço na cama e nela me espreguiço. Novamente com o celular em mãos, atualizo-me do mundo.
Já são 8h35, estou pronta para me levantar. Abro as janelas do meu quarto. Tudo igual. As ruas permanecem calmas, mesmo na quarentena flexibilizada de São Paulo, e as janelas dos vizinhos do prédio da frente continuam fechadas.
Troco de roupa, coloco alguma malha confortável para treinar, calço o tênis e sigo para cozinha. Tomo um copo de água e outro de iogurte, então estou pronta para meus exercícios diários na minha própria sala. De antemão puxo todas as cortinas. Deixo o sol entrar no meu lar e em mim.
O dia segue na minha rotina de quarentena. Antes de ir preparar o almoço volto para o quarto e vejo que as janelas dos meus vizinhos permanecem iguais. A exceção de um dos apartamentos, que subiu metade das persianas, e de outro que abriu milimetricamente uma das janelas para deixar o gato passar. Eu, que nesse isolamento achei que me divertiria olhando a vida alheia, como no filme Janela Indiscreta, contento-me em todos os dias assistir ao gato tomando sol e desafiando a rede de proteção (com preocupação). Às vezes, o espetáculo ganha um novo ator, um tanto mais tímido, que escolhe dias para subir ao palco: outro gato.
A tarde chega e eu percebo que ainda não reguei minhas três plantas. Um pé de coentro, outro de hortelã e o terceiro de manjericão, os três adquiridos nos últimos 70 dias. Não foi difícil entender que eles precisam apenas de água e luz para viver, mas por ser novidade em minha rotina, às vezes esqueço. Para benefício do mundo das ervas, as minhas seguem lindas e viçosas.
Nesse meio tempo, Hércules já voltou e fechou uma das cortinas. Pergunto-me se ele errou de apartamento ou se há alguma medida de combate ao covid-19 que determine que as janelas e cortinas das casas se mantenham fechadas.
Volto para o quarto e vejo o aparador da sala, que nesse período mudou de local e virou minha mesa de estudos. Intercalo minha leitura e escrita com olhadas rápidas para o mundo exterior. Em um desses dias acontecia uma obra barulhenta de esgotamento e de um dos apartamentos começou a soar notas de música clássica. Pensei: finalmente há vida nesse prédio. Minha tese foi corroborada quando, de alguma das residências, que não consegui identificar qual, uma mulher gritou: “Desliga esse som seu idiota, ninguém quer escutar sua música”. Nenhuma barreira física foi suficiente para tamanho isolamento necessário àquela mulher.
Ainda há vestígios de sol lá fora e só agora percebi que a janela logo à frente à minha está completamente fechada. Antes de começar a quarentena uma senhora sempre aparecia nela todas as manhãs, mas depois ela desapareceu. Passei alguns dias me questionando o que poderia ter havido com ela. “Será que minha vizinha adoeceu de covid-19?”, perguntava-me assustada. Preferi acreditar que ela havia viajado e esquecido a janela entreaberta. Hoje estava totalmente fechada. Sinal que a vizinha voltou.
A noite chega e a luzes em alguns dos apartamentos se ascendem. Sim, ainda existem pessoas ali. Graças a Deus. Antes de ir dormir reflito como o mundo mudou em tão pouco tempo, como minha rotina se adaptou e como eu me transformei. Atrevo-me a olhar para fora novamente e me questiono se as mudanças foram muitas realmente. Não sei. O que vejo lá fora é que as luzes já se apagaram e as janelas permanecem fechadas.
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