João Pessoa, 12 de junho de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Não sei como você, caro leitor, está se sentindo nesses ásperos tempos em que o fantasma do coronavírus ronda seus passos e os de todos nós. O medo, a angústia, a ansiedade, a solidão e o tédio certamente se mesclam na conjugação de uma atmosfera de desconforto nunca vivida antes.
No que me concerne, a sensação que sinto é simplesmente de exílio. Sinto-me exilado, não com aqueles sintomas de um exílio poético, experimentado por todo aquele que se presta a lutar com as palavras no sentido de reinventar o mundo e abastecê-lo com a ração necessária de fantasia e sabor.
Não, sinto-me exilado em carne e osso, física e organicamente, pois mesmo perto de pessoas que amo, não posso vê-las nem tocá-las. Sinto-me exilado dentro de mim mesmo nesses ásperos dias de coronavírus. O que não quer dizer que esses dias, em si mesmos, cheguem a diferir necessariamente dos dias ditos normais, aqueles que vínhamos vivendo como quaisquer outros dias. Aqueles dias neutros, brancos e ordenados na planilha da rotina. Mas também eivados de ameaças, violência e injustiça, que disso tem sido feita a nomenclatura da história.
O exílio me dói naquilo que implica de cerceamento e opressão, principalmente no que tange aos limites impostos, pela lúcida necessidade do isolamento social, à liberdade de ir e vir, ou, dito de outra forma, à liberdade de circular por aí, ao léu do tempo, por lugares e paisagens de que gostamos e que nos alimentam o mapa dos devaneios e do espanto diante da beleza geográfica e ecológica da cidade. Sim, porque a cidade onde moro é uma cidade bonita. Sem o coronavírus ou com o coronavírus. Parece que a beleza é indiferente à morte!
À parte isso e, mais ainda, o falecimento das pessoas conhecidas, próximas, desconhecidas e anônimas, vítimas desse mal invisível e silencioso, não vejo onde estão a novidade e o ingrediente estranhos desse mal.
Sei e já sabia que este vírus, como tantos outros, andava e anda por aí desde que a vida é vida e que o mundo é mundo. Como tantos outros, o coronavírus age e reage em pleno meio dia nos espaços e ambientes sociais os mais diversos: formais ou informais, sagrados ou profanos, fechados ou abertos, ricos ou pobres, dentro do inesperado da rotina de cada um.
Conheço-o, desde a mais tenra infância. Logo no Grupo Escolar Major José Barbosa, lá na Comarca, ele se me apresentou travestido na pele de certas professoras e de certos colegas, reinando num clima de autoritarismo e ignorância simbolizado pelo estalo seco e inesquecível da palmatória. Depois, ele estava lá, no Colégio Estadual da Prata, já nos ares da Serra, na figuração poderosa do AI-5, a se prolongar pelos anos de vigilância e de sufoco na UFPB. Num primeiro momento, como aluno, e, num segundo, como professor.
Ah! O coronavírus se disseminava pelos corredores abafados, pelas salas de aula, pelos departamentos e, aqui e ali, se entrincheirava, com todo seu veneno letal, nas reuniões do colegiado. Muitos com quem convivi nada mais eram do que seus fidelíssimos prepostos. Estavam ali, como tantos, hoje, aqui, lucidamente instruídos para fazer o mal.
A verdade é que o coronavírus está solto pelas ruas da cidade, pelas praças públicas, pelos logradouros, pelos bares, pelas livrarias, pelos hotéis, pelas casas noturnas, pelos salões de beleza, pelos bancos, pelos estádios, pelas academias, pelos tribunais, pelas assembleias, pelos shoppings, pelos quartéis, pelas igrejas, pelos centros, pelos terreiros, a destilar, sem complacência, os gases da morte. Dentro ou fora de casa, dentro ou fora da gente mesma, ele está aí e não dá trégua.
Talvez ele seja um elemento entrópico no sistema natural. Mas não tão entrópico quanto o homem. Posso estar errado, porque sou homem, e o homem erra. E não somente erra. Penso que o homem é o próprio erro. Ou, quem sabe, o pior coronavírus.
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OPINIÃO - 22/11/2024