João Pessoa, 07 de julho de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Eu tenho uma amiga que se nosso encontro inicial não tivesse se dado pela irmandade, certamente, seriamos namorados ou já teríamos nos casados várias vezes. Alguém já disse: case-se com uma pessoa que você goste muito de conversar. Não é fácil. Nesse caso, a amizade é superior ao amor.
O nome dela é Nely Cavalcanti, uma mulher muito bonita, que já deve ser bisavô. Lembro dela gravando um livro em espanhol num gravador antigo, para enviar as fitas para outra amiga, que morava longe do Brasil e precisava daquele conteúdo. Aquilo dela ficar horas gravando as fitas cassetes, que hoje não existem mais, mexeu comigo.
Essa minha amiga é politicamente incorreta. Foi apaixonada por Karl Marx, depois Camus, e acho que também por Chico Buarque, (este, fez a música “Atrás da Porta” pra ela e, quando passou aqui com a turnê “Caravanas”, acenou do palco soltando beijinhos. Mas, como a paixão dilacera, acho que ela continua louca por Drummond. Teria sido ela a amante de poeta mineiro? Bom, só perguntando aos búzios.
Falando em Marx, há vinte anos, Nely participa de um grupo de estudo, criado pelo professor Ivandro Sales e outros estudiosos, sobre o livro “O Capital”. Se reúnem mensalmente. O professor Ivandro se desloca de Taperoá com Junior, seu companheiro e vem para a cidade do Conde, onde o grupo se reúne com outras pessoas de Recife e de João Pessoa.
Quando eu ligo pra ela, ficamos muito tempo ao telefone e falamos de várias cenas. Nely é muito sensata, rigorosa, mas não gosta de intrigas, mas se provocar, ela briga. Brigar pela fome dos pobres, é com ela mesma.
Há imagens que ocupam um lugar dentro de nós e não querem de lá sair, exigem que façamos alguma coisa. São como aquelas cenas de filmes que a gente volta duas, três vezes. Meu olhar vagueia pela cidade até que eu encontre uma porta, a porta do Redentor e encontro Jesus exausto na mesma cruz.
Preciso contar, preciso fazer alguma coisa com essa imagem. Ela, a minha amiga, se instala dentro de mim e não quer sair. Coloca poemas no cérebro e fica horas retirando as pedras que restam no meu caminho.
A semana passada liguei e conversamos, até que esbaramos no poema “Romaria” de Drummond. Ela me contando sobre essa poesia em que Jesus está na cruz e sonha com outra humanidade. No poema que está no livro “Alguma poesia”, 1930, Drummond conta que os romeiros vão encontrar Jesus crucificado e fazem muitos pedidos, o que é natural do homem – pedir. Pede-se grana, roga-se amor, pede-se cachaça, esmolas e um pouco de atenção.
Vamos ao poema
“Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras,
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.
Os sinos tocam, chamam os romeiros:
Vinde lavar os vossos pecados.
Já estamos puros, sino, obrigados,
mas trazemos flores, prendas e rezas.
No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha o estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.
Jesus no lenho expira magoado.
Faz tanto calor, há tanta algazarra.
Nos olhos do santo há sangue que escorre.
Ninguém não percebe, o dia é de festa
No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.
Meu Bom Jesus que tudo podeis,
humildemente te peço uma graça.
Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.
Senhor, meu amo, dai-me dinheiro,
muito dinheiro para eu comprar
aquilo que é caro mas é gostoso
e na minha terra ninguém não possui.
Jesus meu Deus pregado na cruz,
me dá coragem pra eu matar
um que me amola de dia e de noite
e diz gracinhas a minha mulher.
Jesus Jesus piedade de mim.
Ladrão eu sou mas não sou ruim não.
Por que me perseguem não posso dizer.
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.
Os romeiros pedem com os olhos,
pedem com a boca, pedem com as mãos.
Jesus já cansado de tanto pedido
dorme sonhando com outra humanidade”.
Diante dessa humanidade que está ai, Jesus sonha acordado com a hegemonia de todos os tons – pretos, mulatos, brancos, americanos, cubanos e brasileiros na geometria agonizante de cada lugar.
Há qualquer coisa de triste em mim ao ver Jesus na cruz, exausto e magoado.
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OPINIÃO - 22/11/2024