João Pessoa, 09 de julho de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
O fato de o presidente ter contraído a COVID-19 parece mais um motivo para dividir o Brasil: há os que desejam que ele morra, há os que desejam que ele sobreviva; os dois lados se odiando e achando um absurdo que se deseje tal coisa. Quem defende um desejo ou o outro tem o direito sagrado de expressar a sua liberdade de expressão. Se defender publicamente a morte de alguém e com direito a artigo na grande imprensa é moralmente defensável, isto já é outra história. Quem o fez está exercendo o seu direito de se expressar, por mais canhestro que possa parecer. Apenas faço a ressalva de que se o desejo de morte fosse expresso por alguém de direita com relação a alguém da esquerda, por mais pernicioso que ele fosse, seria uma gritaria sem conta da parte de quem defende, apenas para as suas conveniências, os direitos humanos.
Como o tribunal dos julgamentos sumários da esquerda está perpetuamente montado, ávidos que são da condenação de todos que não comunguem com as suas humanas, puras e santas ideias, o presidente já está, desde antes da eleição, condenado, só faltando entregá-lo ao carrasco para o cumprimento da pena capital. Agora é apelar para esse Samson indiferente e letal que se chama Coronavírus, na esperança de que ele faça o seu papel e assim o desejo expresso pelos humanistas se realize.
Pelo fato de se tratar de alguém previamente culpado, embora sem ter ocorrido qualquer julgamento formal, é até fácil e justificável desejar a sua morte. A culpa antecipada fornece o argumento e alivia a consciência de quem defende esse tipo de raciocínio. O raciocínio é válido, no entanto – e é bom que se repita –, apenas para o presidente. Se aplicado a criminosos atrozes, a estupradores e assassinos de crianças, por exemplo, que sempre tiveram direito ao beneplácito concedido pelos nossos humanistas de esquerda, tal raciocínio seria considerado como fascista ou nazista. Afinal de contas, os humanistas acreditam, mais do que Jesus, no poder da vida sobre a morte. Que o presidente, de acordo com a liturgia do cargo, como dizia o ainda imortal José Sarney, tem responsabilidades que está negligenciado é a mais pura verdade. Daí a considerá-lo culpado de alguma acusação vai uma distância enorme.
O Livro V da Eneida ilustra bem esse argumento da morte de um para a salvação de muitos – unum pro multis dabitur caput (dar-se-á uma única cabeça por muitas, verso 815). Há uma diferença, no entanto, a ser considerada: aquele que deve morrer, na narrativa do poeta latino Virgílio é um inocente (insons, verso 841) e, além disso, um dos mais importantes e úteis homens de sua equipe, o piloto Palinuro. É o acordo feito entre os deuses Netuno e Vênus, para que possa ser garantida a Eneias a sua chegada ao destino traçado, os litorais do Lácio. Os deuses têm lá suas razões e as suas escolhas para que suas vontades prevaleçam. E os deuses são inquestionáveis. Se eles existem, somos impotentes para questioná-los; se não existem, não há a razão para questioná-los. Estamos, contudo, fora de um espaço mítico, falando de vontade de pessoas, de carne e osso, dentro de uma realidade que não é a ideal, mas é a que temos. Pergunto se desejar a morte do presidente ou de toda a sua equipe ou de todo o congresso ou de todos os ministros do STF ou de todos os que julgamos culpados, a partir de nossa régua que nunca falha, pergunto se nossos problemas seriam resolvidos. A minha resposta é não. Só serão resolvidos quando cada um assumir a responsabilidade que lhe cabe e parar de procurar culpados.
Vou mais além na minha inquirição. E se fosse descoberto, por exemplo, que uma criança específica fosse, à sua revelia, a responsável pela pandemia, o argumento da morte de um para a salvação de muitos seria defensável. Indo mais fundo: e se fosse alguém da família de quem defende esse argumento?
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