João Pessoa, 15 de julho de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Se não estou errado, a serra de Quatro Cantos é o ponto mais alto da região. Lá de cima, divisam-se os contornos agrestes da Comarca das Pedras e outras zonas distantes demarcadas pelas águas da barragem de Acauã (foto). Águas poucas, pois também se veem as ruínas lodosas das antigas edificações de Pedro Velho, pequeno lugarejo à beira do rio Paraíba. Do outro lado, dando para os baixios das planícies estendidas e desoladas, os cumes azuis de Pirauá, sinalizando para as varandas dos abismos mais profundos de uma solidão que não tem nome.
Estamos em plena seca, como de costume, e a caatinga rala despe suas vestes áridas sobre o leito adusto de uma paisagem cinza e parda, onde a mudez das rochas carcomidas pelo uivo dos ventos contrasta apenas com o verde surpreendente de um avelós, recortando o corpo da terra calcinada. Há também um umbuzeiro perdido na poeira do tempo e um juazeiro a figurar, no espaço branco do deserto, o oásis singular de sua cor e o remanso fresco de sua sombra.
Observo do alpendre e tento ver o que outros não veem. Mais que ver e olhar, escutar o lamento intrínseco dessa geografia rude, desabitada da fartura e da beleza, entregue ainda ao pavor do sol que tange, com seus raios fulminantes e perversos, a procissão da morte campeando os bichos abandonados pelas estradas, desossados nas cacimbas secas e nos riachos endurecidos pelo barro podre.
Minha comarca, toda informe pelas feridas da estiagem; toda saturada de cicatrizes expostas, solitária sob o pábulo do destino agreste que a transforma, fosse um corpo organizado de versos, numa espécie de antilira, instituída nas magras metáforas de si mesma, inteiramente nua e dilacerada. Imagino como seria sua paisagem, esta paisagem que observo agora, na oração sagrada da geometria fraseológica e das escarpas verbais e vocabulares da pena euclidiana!
Tomo de um cipó de marmeleiro; recorto-lhe o lombo rugoso, e da madeira cheirosa me vem um sabor indefinido de qualquer coisa que me parece tecida nas malhas da infância nutrida nos currais de boi de osso e de cavalos de pau. Qualquer coisa que lateja e dói, fundindo os ferrolhos da memória e destravando as tramelas da imaginação. Qualquer coisa assim como uma viagem de volta, um passeio proustiano, uma “madeleine”, um à procura do tempo perdido.
Tempo perdido! Não seria esta a sensação que nos aproxima um do outro na irredutível condição humana? Sim, porque todos vivemos um tempo perdido. Todos temos um tempo perdido. Mas a seca, a fome, a comarca, o alpendre, pelo menos nesta crônica domingueira, são coisas só minhas, guardadas e escondidas do lado de dentro. Se possuem a topografia dos verões indomáveis e repetitivos, a verdade robusta do que existe lá fora, nessa seca que tudo humilha e degrada, são também simbólicas nas suas possibilidades vocabulares e nos meus devaneios poéticos.
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OPINIÃO - 22/11/2024