João Pessoa, 19 de agosto de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A leitura, para mim, constitui uma dimensão visceral de meu cotidiano. Não dá para viver sem ler. Ler o mundo e ler os livros. Principalmente os livros. Comigo ou com os outros, os livros sempre me atraem. Por exemplo: não posso ver ninguém com um livro na mão. Quero saber qual é, quem é o autor, qual o gênero etc. E se o meu possível interlocutor me der qualquer chance, quero saber quais as suas preferências, os escritores amados, os poemas eleitos, os contos de cabeceira, os romances relidos, os ensaios mais relevantes, enfim, toda a parafernália idiossincrática que permeia o universo mágico da leitura e a biblioteca imaginária de cada leitor.
Costumo perguntar a meus amigos: O que você está lendo?
Um me diz que anda às voltas, pela primeira vez, com A divina comédia, de Dante Alighiere. Sinto logo uma inveja danada. Inveja da felicidade imensa que meu amigo deve estar vivenciando sob o impacto inconfundível da simetria musical daqueles tercetos inesquecíveis.
Não é toda hora que se pode percorrer as escarpas maravilhosas de uma odisseia subjetiva, descobrindo a alquimia multifária de lugares e personas exemplares, após a terrível constatação de que se via, o leitor, no meio do caminho dessa vida, perdido numa selva escura. Por isto, Dante, sempre Dante, dizia, entusiasmado, o poeta cearense Gerado Mello Mourão.
Um outro me responde que já vai na quarta ou quinta leitura do Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Alerta-me este amigo, ou amiga, não lembro bem, para o cintilar exuberante da linguagem materializado no compasso oral da fala de Riobaldo. Afirma que lê devagar, degustando o ritmo complexo da narrativa, os insights semânticos das reflexões metafísicas e, sobretudo, a umidade teogônica dos estreitos geográficos que invadem a sintaxe retorcida das palavras.
Se a realidade lhe interessa, na sua mais pujante verossimilhança, interessa-lhe muito mais o mito e seus desdobramentos filosóficos e poéticos. Sugiro-lhe que consulte Benedito Nunes, numa belíssima passagem de sua interpretação da cena emblemática na qual Riobaldo, diante do cadáver de Diadorim, descobre, espantado e comovido, que Diadorim era mulher. Diadorim, Diadorim, a minha neblina! (foto Bruna Lombardi no papel de Diadorim)
Dia desses, fazendo a pergunta de sempre a um poeta de minha convivência crítica, fiquei meio confuso, meio desorientado. Assegurou-me que não lia quase poesia. Gostava mesmo de romances e de ensaios literários e científicos, principalmente quando os temas versam acerca de estética, espiritualidade, hermenêutica, física quântica, bibliotecas e criatividade. Poesia, só no que tange aos seus fundamentos teóricos, à sua exegese e especulação filosófica. Na prática, isto é, na efetividade verbal dos poemas e diante de seus apelos sonoros e imagéticos, de sua percepção inusitada perante a naturalidade das coisas, fugia como o diabo foge da cruz.
Segundo tentou me explicar, a leitura de poemas, sobremaneira de bons poemas, desencadeia nele o movimento misterioso de sua própria criação. Para, por exemplo, naquele verso que o deixa trêmulo, quase sem fôlego, de repente jogando-o para fora do poema e o fazendo mergulhar, atônito, nas águas revoltas da vida. Do poema para a vida e da vida para o poema. Eis o seu paradigma incontornável. Coisas de poeta, me diz. Coisas que não se explicam. Apenas acontecem, e acontecem dentro de uma ordem indefinível, intransferível e arrebatadora…
Antes de concluir, porque o espaço se fecha e o tempo exige (devo retomar agora as páginas de O nome do livro, primeiro volume do diário, de Francisco Brennand, leitura que vem me tocando intensa e profundamente), e indagar a você, caríssimo leitor: O que você está lendo?
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OPINIÃO - 22/11/2024