João Pessoa, 26 de agosto de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Parece-me inútil o esforço de organização de uma biblioteca. A não ser que se aceite o primado de uma ordem simplesmente externa e aparente, física e espacial. Dito de outra forma: uma ordem dos livros em sua natureza corpórea e concreta a ocuparem os ângulos simétricos e fechados das estantes.
Insisto: mesmo assim me parece inútil! É mais uma ilusão de ótica que a neguentropia, isto é, o princípio energético da organização, tende a favorecer. De fato, o que existe no interior de uma biblioteca é o acervo enorme de conflitos, uma energia entrópica que corrói o sistema por dentro, a partir das diferenças e especificidades que se mesclam e se contaminam pela ordem dos discursos e pelo plano das ideias e dos conceitos que os mais diversos autores preservam, defendem e divulgam.
Luíz Milanesi, autor de Ordenar para desordenar: centros de cultura e bibliotecas públicas e que conhece o tema como poucos, considera toda biblioteca um ambiente evidentemente perigoso, na medida em que, sistematizando disciplinas e áreas do conhecimento, não raro antagônicas e descontínuas, transforma-se num território desordenado, verdadeira arena de combates ideológicos e guerras culturais. Desconstruindo o pensamento único e a harmonia cognitiva, instaura o reino desconfortável das possibilidades plurais e abriga o demônio das teorias, em suas conjunções e disjunções, sempre reinventadas pelo fio invisível da razão, da memória, da imaginação e da sensibilidade.
Passando uma vista d`olhos pela minha, mais voltada para os assuntos literários, vejo, de repente, Tolstói, com seus contos, romances, peças e memórias, bem colado a Dostoiévski, numa justaposição curiosa e irônica, se pensarmos que em vida os dois escritores nunca se encontraram, apesar de serem contemporâneos. Vizinho a Tolstói, servindo, pois, a uma lógica literária, está Shakespeare, dramaturgo que o russo detestava. De outra parte, dialogando com Dostoiévski, pela imposição da ficção russa, ninguém menos que seu desafeto, Ivan Turguiniev, autor do célebre romance Pais e filhos.
Ainda no campo da literatura estrangeira, a crítica exige o contato direto entre Marcel Proust e Saint Beuve, Sartre e Camus, Victor Hugo e Flaubert, Mallarmé e a tradição parnasiana, Cervantes e as canções de gesta, assim como tenho de colocar Jorge Luís Borges ao lado de Ernesto Sábato, Vargas Llosa em confronto com Gabriel Garcia Márquez e muitos alemães disputando uma brecha nas prateleiras com italianos e espanhóis, norte-americanos, ingleses e asiáticos.
Cá, em nossa casa, a história e a crítica literárias reúnem Sílvio Romero e José Veríssimo, Ronald de Carvalho e Nélson Werneck Sodré, sem contar com a presença recente e profundamente incômoda de um Flávio R. Kothe, desmontando os alicerces de todos os cânones, pondo sob suspeita a autenticidade da literatura brasileira e desconfiando do valor estético de Machado de Assis, de Graciliano Ramos, de Guimarães Rosa e de Clarice Lispector, entre tantos outros.
Se Gilberto Freyre, por exemplo, proseia em surdina com José Lins do Rego em nome das tradições modernas e regionais, não consegue evitar o provinciano Allyrio Meira Wanderley, corroendo, como um verme operoso e implacável, seu sistema antropológico no panfleto Os carneiros cinzentos, escrito justamente para destruir a imagem do homem de Apipucos, e por aí vai.
Certos encontros ou desencontros, em função de procedimentos catalográficos ou de critérios bibliográficos que nem sempre conseguem elidir o caráter explosivo das ideias, desmistificam a imagem de uma biblioteca como um refúgio sossegado e silencioso, como uma morada da paz, para transformá-la num permanente perigo.
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TURISMO - 19/12/2024