João Pessoa, 08 de setembro de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Num seminário sobre dilemas éticos na medicina, levantou-se a questão da violência contra a mulher, e se o médico deveria denunciar o violentador. Ali, falava-se do marido ou companheiro. Um médico não pode fazer nada que não seja do desejo de sua paciente. O que ele vai fazer é ajudá-la a compreender a situação socioeconômica ou afetiva em que vive e, a partir daí, dotá-la de condições biopsíquicas que as permitam denunciar quem a violenta ou oprime. Isso se chama autonomia.
Segredo médico é instituto milenar, já grafado nas palavras do juramento hipocrático. Ele pode ser quebrado por motivos justos ou em notificações compulsórias de doenças. O motivo justo é aquele que pode ser utilizado como justificativa para a prática de um ato excepcional, sustentado em razões legítimas e de interesse coletivo. Por exemplo, ele não poderia atestar a capacidade de alguém com epilepsia para pilotar aviões.
Agora, vamos ao caso de uma mulher. Ela saiu do trabalho, andou duas horas de ônibus, e, ao descer, é atacada por um maníaco que a violenta e a estupra. A sensibilidade do leitor é capaz de conceber como fica a cabeça dessa vítima? Confusa. Ultrajada. Danificada. Sente-se suja, com nojo do próprio corpo que, supostamente, guardou as marcas do crime. E por força da formação moral que recebe, levanta suspeitas de auto culpabilidade. Não deveria ter ido por ali. Saiu muito tarde… Quando, na realidade, foi vítima de um criminoso. A quem ( de confiança!) ela pode procurar? Uma equipe de saúde que faça acolhimento, que seja discreta, que não a exponha. É essa confiança que a permite ir a um serviço de saúde, para cuidados gerais e, a seu desejo, pleitear um abortamento legal.
Daí o erro da Portaria do MS, quando mistura as figuras do médico assistente, com a de médico perito. Ao primeiro, cabe assistir. Diagnosticar e intervir terapeuticamente. A ele não cabe “ emitir parecer técnico após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, […]”. Essa portaria, como se vê, não tem letra de médico, nem de profissional de saúde. Anamnese não tem adjetivação. Por outra, é ridículo dizer ao médico o que ele deverá fazer com a paciente, como fazer exame físico geral e exame ginecológico. Risível! Trágico.
Escrever laudo compete ao perito que, imbuído nessa função, deve emitir laudo médico ou técnico. Não se pode misturar a anamnese de um paciente, seja ela vítima de estupro ou não, com a emissão de documentos judiciais. Porque, assim, você aprisiona a relação de confiança entre médico e paciente, numa relação policialesca, com fins outros que não os cuidados com o paciente. Quebra o princípio da confiança.
Deixa os profissionais da saúde cuidarem das vítimas. Deixe-os fora de procedimentos burocráticos. Eles já têm muito o que fazer . Não é colegas dos Conselhos federais de medicina, enfermagem, psicologia e serviço social? Vamos nos posicionar? Não podem constranger quem já foi tão humilhada, a passar por tantos profissionais, laudos e procedimentos que aviltarão ainda mais a dignidade de ser humano. Respeite-se o espaço de cada profissional. Respeite-se as vítimas de estupro. Do jeito que está a portaria, eu digo não outra vez!
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