João Pessoa, 16 de setembro de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Se você possui uma biblioteca, é preciso conhecê-la bem. Conhecê-la nos seus aspectos físicos e materiais, atento à disponibilidade espacial de sua geografia livresca, periodística e documental. Saber, por exemplo, dos segredos bibliográficos que disciplinam a ordem dos livros em cada estante, em cada prateleira, certo de que existe uma secreta hierarquia presidindo a companhia inesperada de volumes, autores, coleções e demais categorias que dão vida à vida das bibliotecas.
Neste sentido, a biblioteca é como uma cidade, uma região, um país, o universo. Jorge Luís Borges, que foi bibliotecário, via, na biblioteca, uma metáfora do mundo. Quem a possui, portanto, tem de viajar por todos os seus recantos, frequentando, ora os mesmos lugares, numa revisitação embalsamada pela amorosa intimidade com certas páginas, certos tomos, certos opúsculos que nos revigoram o misterioso prazer da leitura, ora descortinando paisagens novas, desconhecidas, surpreendentes, que nos ajudam a recompor nosso olhar sobre as coisas e, entre estas coisas, as mais preciosas, os próprios livros, os livros, nossos amigos, como diria Eduardo Frieiro.
Essa viajem é fundamental exatamente porque delimita as fronteiras de sua topografia e estimula o bibliotecário a uma contínua e permanente relação orgânica com o acervo formado ao longo dos anos.
Nessa manhã de sábado, por exemplo, tudo convoca para um passeio pela várzea do rio Paraíba, tocando os cuidados de Zé Lins na descrição da cheia, do apito do trem, do crepúsculo melancólico divisado dos alpendres da Casa Grande ou das noites agônicas do mestre Zé Amaro, amarelando o desgosto da loucura. Do engenho Corredor pode-se deslocar para o Pau d`Arco e soletrar a métrica áspera, porém melódica, dos versos de Augusto, sobretudo aqueles que ventilam os raios furiosos do sol deflorando o verdume da terra estrumada e luxuriosa, assim como do gosto azedo da cana carregada pelo finado Toca.
No domingo à tarde, a viagem pode ser mais longa. Desta feita são as estepes selvagens da Sibéria a nos ofertar o drama insuperável dos personagens de Tchecov e Dostoiévski. De Sebastopol para São Petersburgo distam muitas léguas, léguas imensas, léguas infinitas, léguas brancas, comprimidas, no entanto, pela lógica aliciante e mágica da proximidade espiritual e estética que só uma biblioteca, na lúcida alquimia de seu ordenamento, pode promover.
E daí, aquele que possui uma biblioteca, aquele que ama os livros, pode, sim, explorar, não apenas a sua organização material, mas, sobretudo, os sinais simbólicos e inumeráveis que constituem as informações, o conhecimento, a sabedoria. A viajem, agora, ultrapassa os limites do toque, da manipulação, da limpeza, da contemplação e de tudo aquilo que, nos livros, nos chama a atenção pelos ingredientes sensíveis que os fazem refinados objetos de desejo.
Viajar agora e viajar assim é penetrar fundo no miolo das imagens e no tutano das ideias para refazer, no movimento fixo e flexível da leitura, a matéria mesma da vida. Em certo sentido, possuir uma biblioteca é uma maneira de viver.
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TURISMO - 19/12/2024