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Jornalista paraibano, sertanejo que migrou para a capital em 1975. Começou a carreira  no final da década de 70 escrevendo no Jornal O Norte, depois O Momento e Correio da Paraíba. Trabalha da redação de comunicação do TJPB e mantém uma coluna aos domingos no jornal A União. Vive cercado de livros, filmes e discos. É casado com a chef Francis Córdula e pai de Vítor. E-mail: [email protected]

Madrugada com Gardel

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publicado em 10/10/2020 ás 08h23
atualizado em 10/10/2020 ás 18h29

Não fui assaltar a geladeira, não faço essa coisa de comida fora de hora. Nem sei cozinhar. Eu sempre acho que comer na madrugada é para quem tem preguiça ou cansaço de existir ainda que seja madrugada. São poucas as pessoas naquele instante silencioso, quase branco, quase preto, apenas as luzes do forno de microondas e aparelhos eletrônicos, quase vagalumes.

Nada é absoluto porque não é absoluta a madrugada das grandes cidades, nos prédios e olhares distantes, por trás de grades ou telas. Solitários insistem em ver quem passa na rua, e nunca é tarde para não encontrar alguém ou ninguém que perguntasse, que perturbasse, que cobre alguma coisa. Nada.

Minha cama me esperava. Só usei beliche uma vez na vida, quando morei em Paris. Deve se andar na casa de madrugada com cuidado, e é preciso transpor pernas, o velho pijama, estranhos pensamentos que nos acompanham. Nessa pandemia já vi de tudo.

Abri a janela para sentir o aroma do jasmim, por mim, por ter ficado ali, na madrugada, perdido na companhia de quadros. Queria sim estar ali, mas claro, que diferença faria cinco minutos sem dormir, sem que a água fervesse, porque não era hora do café.

Eu sonhando que tinha voltado ao normal: colocar o tênis e ir caminhar de madrugada. Nem Proust imaginaria o tempo perdido, de espera, para que algo acabasse, não a madrugada, mas o alongar de braços e quando, enfim, abraços refeitos, numa espera intercalada de outras madrugadas.

Pensei no tempo em que dançávamos de madrugada, eu e a mulher amada se desfazendo da noite passada, mas a noite nunca foi uma criança. Na espera de um minuto de orgasmo, entre uma música e outra, e eu já sabia que engrenaria mais um beijo, que me alimentava naquela madrugada.

Madrugada substanciosa, de qualquer mundo. Lá longe o homem do sertão já acordou, está de pé para trabalhar. Tanto tempo vivido feliz, como nos versos de amor de João Cabral de Melo Neto, enquanto imaginava o banho maria à espera dos pequenos dizeres. Olá! Bom dia!

Pensei em botar um tango de Gardel (foto) para tocar, mas eu não moro em apartamento e o tango sempre vem com restos de coisas perdidas.

Comecei a assobiar, “Madrugada chegou o sereno caiu/Meu amor de cansaço/ Caiu nos meus braços/Sorriu e dormiu/ Eu só queria que não amanhecesse o dia/ Que não chegasse a madrugada/ Eu só queria amor/ Amor e mais nada”.

Fechei os olhos, voltei a dormir. A vida de cada um tem sua madrugada e eu sonhando com Neblina. Sim, Neblina lá de Guimarães Rosa, do mundo, a se perder de vista. Eu tenho fome de viver, nunca de assaltar a geladeira.

Kapetadas
1 – Alergia agora, agora e amanhã. Alergia agora e depois e depois e depois de amanhã.
2 – O que você gostaria de comer agora e sem culpa? (Sem pornografia, pfv)
3 – O som na caixa está dentro do texto

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