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Francisco Leite Duarte é Advogado tributarista, Auditor-fiscal da Receita Federal (aposentado), Professor de Direito Tributário e Administrativo na Universidade Estadual da Paraíba, Mestre em Direito econômico, Doutor em direitos humanos e desenvolvimento e Escritor. Foi Prêmio estadual de educação fiscal ( 2019) e Prêmio Nacional de educação fiscal em 2016 e 2019. Tem várias publicações no Direito Tributário, com destaque para o seu Direito Tributário: Teoria e prática (Revista dos tribunais, já na 4 edição). Na Literatura publicou dois romances “A vovó é louca” e “O Pequeno Davi”. Publicou, igualmente, uma coletânea de contos chamada “Crimes de agosto”, um livro de memórias ( “Os longos olhos da espera”), e dois livros de crônicas: “Nos tempos do capitão” …

Se fores rezar, faça-o com sobriedade

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publicado em 23/10/2020 ás 09h03

Se não for para pedir a Deus que Ele mude as suas leis em benefício de nossas necessidades e ao arrepio das necessidades de outras pessoas, orar é uma prática que serve para nos alinhar com a nossa natureza mais profunda e com a intimidade essencial de todas as coisas que não compreendemos.

É por isso que as melhores orações são aquelas feitas em silêncio, na solidão das nossas almas, na contrição serena dos nossos pensamentos, no olhar para dentro de nós mesmos.

Há duas formas de oração que não me apetecem, embora as respeite profundamente: uma é aquela espalhafatosa, aquele alarido que busca o convencimento pelo grito; a outra forma, a oração pelo medo, que pode se transformar em um martírio. Eu, particularmente, tive uma experiência muito dolorosa com esse segundo tipo de reza.

É que fui educado a rezar pelo medo, pelo medo do inferno, pelo medo do fogo do inferno, pelo medo das tentações da carne… Foi assim que minha mãe foi doutrinada, foi assim que ela passou para os seus filhos. Foi assim que a Igreja velha lhe ensinou.

Demais disso, eu morria de medo de almas. Também pudera! Todos os dias, ali, sentados na rede de papai, eu e ele, na sala da nossa casa, com muitos vizinhos em volta, papai, incansável, contava seus causos, muitos deles tendo como personagens almas penadas, almas perdidas, almas vagantes, almas, almas, almas…

Eu me tremia… e rezava. Rezava, para que as almas não me aparecessem. De início, rezava um pai-nosso e o oferecia à alma do defunto mais recente, mas a coisa ficou séria, muito séria: minha cabecinha teimava em me lembrar de outros mortos (tias, tios, parentes, parentes de parentes), e cada um teria que ganhar a sua oração…

Chegou a um ponto que, da boquinha da noite até a hora de dormir, não havia mais tempo para rezar, e assim, por muitas noites, apagadas as lamparinas, começava o meu martírio: enquanto todos dormiam, o garoto de 10 anos ainda estava na metade das orações…

Então, tive uma ideia: começaria a rezar (foto) às quatro horas da tarde, de modo que, quando o breu da escuridão tomasse conta da noite, eu, sossegado, dormiria serenamente, porque, agora, satisfeitos, todos os defuntos lembrados estariam em paz.

Essa loucura demorou um pouco, até que percebi que isso era demais: abandonei todos os defuntos, e, por longos vinte anos, todas as orações morreram com eles. E foi assim que as almas penadas, as almas perdidas, inclusive as do purgatório, livraram-se das minhas rezas fiadas, e eu — ah! —, enfim, fiquei livre do fogo do inferno! E foi assim que, por muitos anos, a minha oração virou silêncio.

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