João Pessoa, 18 de novembro de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A beleza não é um conceito nem é um dogma. Nada na beleza é fixo, e como todas as coisas e todos os atributos, a beleza é histórica, ou seja, integra o tecido imponderável do bicho humano, desde que o mundo é mundo. Coisa de destino, coisa de circunstâncias, momento de prazer e visita do desencanto, a beleza está aí, filtrada por nossos olhos, captada pelas malhas criativas dos sentidos, da imaginação e da memória.
Qual seria o elo enigmático entre beleza e memória?
Respondo com o poeta inglês, John Keats, (foto) citando o primeiro verso de seu poema “Endimião”, na tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos: “Tudo que é belo é uma alegria para sempre”. O que é belo, portanto, possui durabilidade, e flexibilidade bastante para voar no tempo e sobre o tempo, indiferente à paisagem branca do esquecimento.
Ora, a beleza não é algo que domino e possuo, que faço e desfaço ao calor de meus medos e desejos. Não: a beleza é sobretudo uma relação com a existência e com as criaturas; uma experiência misteriosa que o cotidiano pode nos ofertar, dentro de seus horizontes imprevisíveis e de seus translúcidos equinócios. E como toda experiência, pode ser ressignificada, preservada, cuidada, enfim, reinventada, assim como a própria vida, conforme nos lembram a intensidade e a melodia dos versos de Cecília Meireles: “A vida, a vida, a vida / só é possível / reinventada”.
Por isso carrego um cariri na memória, cultivo um patrimônio de sol, de pedra e poeira, trilhando as escarpas sombrias de uma terra árida e adusta que me habita os córregos do sonho e me alimenta a fantasia e a saudade. Por isso detenho um naco de beleza tecida na ausência da água, nas fraturas expostas dos magros barreiros, na poesia calcinada da caatinga rala, nos campos desnudados, com seus mandacarus e marmeleiros solitários e suplicantes.
A beleza está aí, está ali, está acolá, inteira e substantiva, voluptuosa e dilacerada, trágica e sublime, nas saliências rugosas dessa geografia cáustica, aberta aos ventos e aos vapores quentes e úmidos que vêm das serras e se abrigam nas furnas e no oco profundo da alma, fertilizando os alcantis e os lajedos da palavra, o galope alternado de versos secos e tempestuosos, a argila incandescente das imagens primais e definitivas.
Seja um boi pastando as ramagens de sua solidão; seja um juazeiro carpindo, em seus espinhos pontiagudos, a erótica incontida da natureza; seja a percussão dolorida de um chocalho ecoando nas ladeiras desertas dos grotões invioláveis; seja o silêncio da pedra tocada pelo hálito sagrado dos deuses e fantasmas geodésicos; seja, enfim, o milagre do verde de seus olhos se espalhando pelos roçados e canteiros da terra molhada e estrumada de promessas e futuros.
Tudo, tudo que me lembra o Cariri, constitui, assim, um pedaço formidável de beleza. O Cariri é meu sertão de dentro, meu condado mítico, minha topografia encantada, minha catedral onírica, a Meca que meus olhos procuram nos dias de cansaço e amargura. A mulher e a poesia que amo, por exemplo, são uma dádiva que me veio dos seus ventos tristes e de suas vértebras aladas. Por isso tenho um cariri na memória.
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OPINIÃO - 22/11/2024