João Pessoa, 23 de novembro de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Friedrich Nietzsche (foto) defendia que a habilidade inata ao ser humano de esquecer é o que torna possível ser feliz. Para o intelectual alemão, viver sem esquecimento seria danoso e fatal a um povo ou a uma cultura. Ireneo Funes, personagem de Jorge Luis Borges dotado de memória absoluta, por força da sua incapacidade de esquecer e de desprezar as particularidades e assimetrias entre objetos e fenômenos da mesma natureza, também era incapaz de generalizar, abstrair, estabelecer padrões e, em última instância, de raciocinar.
Tanto no âmbito individual quanto no social, o esquecimento é a regra. Em milissegundos, vou esquecer que recebi uma mensagem no celular enquanto escrevia este texto. No plano das relações particulares, esquecer atitudes infelizes de pessoas que nos são caras é fundamental para a continuidade dos relacionamentos. No contexto social mais amplo, os entes sociais (família, escola, igrejas, governo, ONG´s…) soem materializar as memórias que julgam mais importantes em diversos meios: álbuns de fotografias, eventos, desfiles, paradas, manifestos, documentários, obras audiovisuais etc). Embora as tradições costumem resistir ao tempo, as nuances de cada evento são, via de regra, perdidas.
Existem louváveis iniciativas no sentido de registrar e dar publicidade às graves violações aos direitos humanos. Tais registros não são nem devem ser política e ideologicamente neutros, se é que é possível tal neutralidade. Entretanto, ao lado dessas nobres iniciativas, figuram outras com propósitos menos elevados.
Por ocasião da conturbada transição da democracia americana (Eleições Presidenciais 2020), membros da ala mais radical do Partido Democrata manifestaram a intenção de arquivar posts antigos de apoiadores do atual presidente nas redes sociais, para fins de “prestação de contas”. Na mesma toada, ativistas anti-Trump chegaram a criar uma lista negra, posteriormente retirada do ar, com os nomes de pessoas ligadas ao governo Trump. A intenção declarada do The Trump Accountability Project (https://www.trumpaccountability.net/) era impedir que as pessoas recém-egressas da administração Trump fossem bem-sucedidas em outro ramo da economia. Trocando em miúdos, seria uma espécie de pré-cancelamento de profissionais que ousaram trabalhar em um governo que ostenta visão política diferente.
Se o projeto fosse bem-sucedido, empresas ficariam constrangidas em acolher os ex-funcionários públicos, obstando ou dificultando a continuidade de suas carreiras. No longo prazo, profissionais de mercado poderiam deixar de prestar relevantes serviços públicos por receio de perseguição política no futuro.
A democracia é um sistema político que se alimenta e depende do permanente diálogo de posições políticas divergentes. O próprio ato de materializar a memória e utilizá-la livremente só é permitido em ambiente democrático. Nesse passo, a instrumentalização da memória para fins de vingança política e silenciamento de adversários parece-nos danosa à democracia, na medida em que ataca seus próprios fundamentos. De mais a mais, tais atitudes favorecem uma banalização das tais iniciativas que buscam trazer à luz graves violações aos direitos humanos.
Em suma, tanto no âmbito privado quanto no público, a utilização da memória para fins de perseguição política pode afetar as próprias bases da democracia. No nosso sentir, faz-se necessário que as empresas resistam à pressão política do cancelamento e rejeitem o papel de meras caixas de ressonância de entidades movidas pela vingança política.
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TURISMO - 19/12/2024