João Pessoa, 25 de novembro de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
É verdade: meu corpo possui uma memória, uma memória que não depende de minha vontade. O filósofo Henry Bergson teorizou, em detalhes, os meandros imponderáveis desta memória; Marcel Proust (foto), em sua monumental obra, “Em busca do tempo perdido”, pôs em prática suas possibilidades infinitas na espiral de um estilo literário que se transmuda, não raro, na mais intensa e delicada experiência musical.
Logo no começo de “O tempo redescoberto”, na tradução de Lúcia Miguel Pereira, o narrador assinala: “{…} parece existir uma memória involuntária dos membros, pálida e estéril imitação da outra, que lhe sobrevive, como certos animais ou vegetais inteligentes vivem mais do que o homem. As pernas, os braços estão cheios de lembranças embotadas”.
Eu diria: – não só as pernas, não só os braços. Os pés, as mãos, os dedos, os lábios, os olhos, a língua, as axilas, os cabelos, tudo carrega um traço de vivência íntima, consolidada na certeza poética de que “de tudo fica um pouco”. Câmara Cascudo, por exemplo, fala de uma história dos gestos, sinalizando, portanto, para a complexidade antropológica e existencial do nosso modo de ser e de se comportar.
A água de mar, salgada e morna, evoca a capilaridade de uma pele; as águas de rio, solitárias e correntes, evocam o silêncio de um crepúsculo, a imagem de alguma criatura que se perdeu na terceira margem, o ar de súplica de alguém que já nem existe mais. Cicatrizes de ouros toques marcam a história de meu corpo que envelhece túmido de lembranças.
Os perfumes que nos embebem no conflito dos aromas formam uma história singular, ligados um e outro ao elemento intangível dos múltiplos abraços, à tepidez incandescente dos beijos imaginados, ao império inevitável que o sabor das coisas e dos dias nos impõe.
O meu corpo, eu sei, é a chave e a porta para tudo isto. O corpo é a grande razão, dizia Nietzsche. Com ele eu sinto, por ele eu falo, é dele que advém a herança mágica dos bens sensíveis, o milagre cotidiano de se saber único, o elo enigmático com os fios da eternidade.
Mutilem meu corpo, e minha alma sofrerá, e a minha memória restará partida e alquebrada diante da solidez do mundo. Por isto o corpo carece de cuidado especial. Não confundir este cuidado, que exige constante convivência interior, a densidade dos afetos, com a simples ginástica, o exercício físico, ou, pior, com o esgar da malhação.
Cuidar é tê-lo em repouso, mas também o expor ao vento, ao sol, à chuva, ao calor secreto das noites e à neblina azul das manhãs, sempre aberto e ofertado ao contato da natura mãe, sobretudo ao pedido de outro corpo, quando se ama este corpo. Quando dois corpos que se amam se encontram, duas memórias se fundem, e cada uma, em si mesma, se enriquece cada vez mais.
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TURISMO - 19/12/2024