João Pessoa, 25 de dezembro de 2020 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Alguns objetos ficam dentro das nossas memórias e lá descansam tranquilamente, como se estivessem embalados por algum tipo de cântico mágico, cantiga de ninar. Mas, não dormem. Estão sempre ali, perscrutando nossas lembranças, resistindo ao esquecimento e alimentando nosso cotidiano de algum tipo de saudade, dor miudinha querendo os olhos da infância. É porque não querem ser enterrados no fundo das nossas almas, no lugar sombrio das nossas mentes. Sabem que outras quinquilharias do presente são adornos mais reluzentes aos nossos olhos imediatistas.
Seguramente, era o objeto mais bonito que havia ali, dentro daquele móvel, para os meus seis anos. Soube, recentemente, que papai o houvera adquirido em Recife. Não sei como. Não lembro papai referenciar alguma ida à capital do Leão do Norte. Eu não sabia dessa história, mas isso explica o meu encantamento por ela. Coisas de outro mundo encantando um beradeiro nascido no pé da Serra do Desterro, no Sítio Saco Sinhazinha de Santarém (Joca Claudino), sem ter muita gente por perto.
Talvez fosse o objeto mais valioso na cristaleira da minha irmã. Não porque ele tivesse algum valor econômico. Certamente fora apenas o invólucro de alguma coisa que encantou papai — embalagem e conteúdo. Sim. Papai deve ter achado o seu formato muito bonito e o trouxe consigo, ou comprado de alguém, de um caixeiro viajante qualquer, talvez. Minha irmã, também enfeitiçada pelo que nunca vira, guardou a coisa para si como uma joia a ser exposta no móvel da sua casa, quando casasse. Eu, tendo imitado os dois, hoje escrevo sobre essa saudade com leve vontade de chorar.
Uma garrafa. Não lembro dela lá em minha casa. É como se sempre tivesse existido na casa da minha irmã, dentro da cristaleira que ficava na sala do meio, perto da janela que dava para a casa de Zé Leite. Amarela, quase cor de ouro. Parece que sempre estivera com o bico quebrado. Uma asa que enlaça o seu corpo rechonchudo ao seu bico, como se fosse uma corda que a segura dentro de si mesma. Letras bem desenhadas em preto; também não lembro se, algum dia, eu tive a curiosidade de ler a escrita do seu dorso. As letras eram desenhadas, enroladas umas nas outras, e, por aquele tempo, eu devo ter me importado muito mais com o objeto como um todo do que com aquelas mal traçadas linhas.
Mas, o passar dos anos me disse hoje: O que ali está escrito? A tecnologia foi cúmplice da minha curiosidade e lente aumentada. Cliquei em cima da imagem, dei um zoom: a primeira palavra ainda me é mistério, mas o restante do escrito estampa a seguinte frase: “Aguardente de Cana Engenho São João Recife”.
Caraca! Engenho São João, Recife. Ponho o Google para me trazer o passado. Se o site de pesquisa estiver correto, o certo é:
“(…) A Usina São João da Várzea continuou em atividade até o ano de 1943, quando veio encerrar sua produção de açúcar e álcool, passando as suas terras destinadas a outras atividades industriais. Naquela extensa área, antes ocupada secularmente pelos canaviais dos primitivos engenhos e mais recentemente da primitiva usina, foram construídas: cerâmicas, fábricas de azulejos, de porcelana, de vidros, siderúrgica e outras unidades do Grupo Brennand, casas dos proprietários, vila de operários, construída no final do século XIX.
Em 1990, o grupo Brennand vendeu as fábricas de cimento Atol, Paraíba Portland, Cimepar e Goiás e com o consentimento dos seus familiares, Ricardo Brennand, sobrinho anônimo, utilizou parte dos recursos para fundar o Instituto Ricardo Brennand (IRB), uma sociedade sem fins lucrativos, presidida pelo próprio empresário, situado na Alameda Antônio Brennand, s/n, Várzea-Recife, um complexo todo edificado em estilo medieval gótico, formado por três construções distintas — o castelo, a pinacoteca, capela e a biblioteca. Contém, também, um auditório para 100 pessoas, com uma área de 1.200 m2. O IRB, um empreendimento que representava o seu grande sonho com a criação de um pólo turístico cultural local, nacional e global de valor inestimável, foi inaugurado em 2002, em terras que no passado pertenceram a João Fernandes Vieira.” (http://engenhosdepernambuco.
Dirão que esse tipo de lembrança é munganga de pobre. E é. Tenho um orgulho danado das simplicidades dos objetos e das suas vidas enroscadas nas vidas de alguma pessoa viva ou morta. Não sei, hoje, se objetos tão comuns tem algum sentido, mesmo “lá em nós”, no alto sertão da Paraíba, onde a singeleza dos objetos é córrego de areia seca, doido para morrer no mar. Para mim e para minha irmã Dedé, sim: outras terras, outra gente, o desconhecido encantando a fantasia.
Pois é, se essa garrafa não foi alguma coisa falsificada — e isso, hoje, não importa para a minha lembrança, tem um montão de tempo, ainda viva pelo encantamento de quem a achou, um dia, a coisa mais bonita do mundo.
* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB
VÍDEO - 14/11/2024