João Pessoa, 19 de janeiro de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro

ÚltimaHora
Médico. Psicoterapeuta. Doutor em Psiquiatria e Diretor do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba. Contato: [email protected]

Meu coração azul

Comentários: 0
publicado em 19/01/2021 ás 07h00
atualizado em 18/01/2021 ás 19h26

Morri algumas vezes. É ruim morrer e continuar vivo, só para sobreviver. É ruim a angústia da incerteza. Seja da biologia, seja da doença, seja da agonia. E atingindo a ti, é bem pior que em mim. Eu já sei sofrer. Já aprendi, exposto ao sol queimante das Espinharas. Aprendi no trabalho laborioso. Também já vivi. Já fiz tudo que sabia fazer. D’outro modo, eu poderia me reinventar. Mudar de guia, eu poderia.

Posso recontar minha própria história. Não tem muitas proezas, reconheço, nem grandes superações, como assisto nos programas de TV. Tive destemor e medo, salteado com rusgas no ir e vir. Não tenho grandes eventos que lhes sirvam de lição; que quem vem de onde venho, já queimou muita lenha. Já paginou estrelas e aprendeu a andar na mão justa e clara, livrando-se de pedras, pelo acostamento da sabedoria.

Meu pião (foto) rodava certinho. Com ponteira, como o seu Geraldinho. Não tinha malabarismos, porque fui peão de rodeios sem touros. Sem sons de plateias. Sem cordões de ouro. Sem palco ou cantor sertanejo.

Nem a perdoar aprendi. O que sei, das aulas de catecismo, é que Deus perdoa a todos. Eu não consegui ser tão iluminado assim. Aprendi, sim, a esquecer, para não morrer sufocado pelas toxinas do meu próprio eu. E, para me salvar, fiz morada ao lado do saber.

Se me perguntares: a gente morre em vida? Sim! Quando o Outro que é de ti, sofre sem merecer. Morrer assim, eu considero uma forma de resistir. De não praguejar. De não deixar de discernir o que vem por cota de merecimento, e o que chega por ordem do destino genético, ou pelo que há de aporético nos desígnios de nós, os homens.

Quantas vezes morri? Foram poucas, para minha idade. Mas, em pouco tempo, morri muitas vezes. No olhar. No meu sentimento. Morri sobre um leito. Morri de dor. E no que, em mim, não cabia. Morri anestesiado na cirurgia. E, pelo que nas mortes vi, sei que poderei morrer mais vezes. Não temas, pois que tudo pode acontecer em vida. Morremos também sem perceber. Como eu, que morri numerosas vezes, num canto de quarto, sem ninguém saber. Como se me atingisse um “relógio que tivesse o gume de uma faca, e toda a impiedade, de lâmina azulada.” Somente para golpear meu coração azul e me ver morrer.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB

Leia Também