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Jornalista. Ex-repórter do Portal MaisPB e de outros sites de João Pessoa-PB. Pessoense residente em São Paulo. Observadora da vida, gosta de contar histórias em primeira pessoa. Contato: [email protected]

Mulheres vítimas de seu local de nascimento

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publicado em 29/01/2021 ás 11h24
atualizado em 29/01/2021 ás 12h02

Kahuindo, nascida na República Democrática do Congo, aos 20 anos já havia dado à luz a dois filhos, ambos frutos de estupro. Sequestrada e mantida em cativeiro, foi violentada repetidamente por seis soldados da Ruanda (vizinho ao Congo) durante três anos. Grávida do segundo filho, ela conseguiu fugir.

Bibiane, também congolesa, três filhos, um já morto por desnutrição. Enquanto carregava farinha em uma das florestas do seu miserável país – como único trabalho para subsistência – foi atacada por três homens que a estupraram diversas vezes por três dias. Livre da clausura e de volta ao lar, o marido a abandonou porque não aceitou a “desonra” de sua companheira. Bibiane retornou grávida e soro positivo.

Vumila dormia no momento em que um grupo de rebeldes ruandeses invadiram sua residência para roubar seus filhos. Eles a sequestraram e a levaram a um ponto miliciano de verificação, onde pelo menos nove homens a estupraram em uma ampla sala a céu aberto na presença dos demais rebeldes e prisioneiros. Vumila, que era casada, foi escolhida por um dos comandantes para ser sua “esposa” e, por oito meses, sofreu abusos sexuais. Quando precisava ir ao banheiro, era amarrada com uma corda, igual a um bicho. Antes de ser liberta, a chutaram, chicotearam, espancaram e arrancaram suas roupas. Em casa e gestando uma criança do estuprador, o marido a rejeitou e a devolveu à família.

Além da vida infernal de abuso e violência essas mulheres têm em comum a mesma pátria, que dizima seu próprio povo das maneiras mais brutas e perversas há mais de duas décadas. O país, rico em recursos naturais, como minério, petróleo e metais preciosos, ocupa a lista dos mais perigosos do mundo. Se é área de terror para homens, o que vislumbrar para mulheres nascidas em terras sem fronteiras para violação dos seus corpos?

Os três relatos foram extraídos do livro “É isso que eu faço – Uma vida de amor e guerra”, da fotojornalista e correspondente de guerra norte-americana Lynsey Addario. As histórias foram coletadas de 2006 a 2008, período que ela cobria os rastros deixados pela guerra civil do país (1998 a 2003). Centenas de milhares de civis retirados de suas aldeias dividiam campos superlotados na província de Kivu do Norte e Kivu do Sul, no Leste da República Democrática do Congo. “Ataques do governo e de soldados rebeldes deixavam milhões de mortos e um número incalculável de congolesas violentadas”.

Lá, o estupro é instrumento de guerra. O crime marca território, destrói laços familiares, intimida civis e estabelece poder. Homens fardados forçam famílias das vítimas a assistir à barbárie. Nas zonas de conflitos as batalhas se passam nos corpos das mulheres, que muitas vezes, além de sofrerem estupros coletivos, têm os mamilos e o clitóris arrancados à faca; armas introduzidas na vagina e no ânus, causando rasgos e fístulas no períneo; e os pés furados para que não fujam. Quando conseguem voltar para casa carregam consigo heranças dos seus algozes: filhos gerados por crimes hediondos, doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids, e o estigma da violação, sofrendo preconceito da comunidade e sendo banidas do convívio familiar.

A cobertura jornalística no Congo é descrita em apenas cinco das 351 páginas do livro e garanto: nada é mais chocante e revoltante. São crianças, jovens, adultas e idosas destinadas a sofrer, sofrer brutalmente, e a sentença é dada no dia em elas nascem mulheres e no Congo.

Addario – que conta toda sua trajetória para se tornar uma fotojornalista de guerra em meio a um campo de trabalho majoritariamente ocupado por homens – visitou outros países em que a liberdade e direitos são tolhidos pelo governo. A jornalista cobriu combates no Afeganistão, Paquistão e Iraque, lugares majoritariamente muçulmanos regidos pela lei do Alcorão. Neles, meninas não têm direito à educação e na idade adulta são proibidas de trabalhar. Usam burcas que lhes cobrem da cabeça aos pés e as assemelham a túmulos debaixo de panos. Das mais jovens as mais velhas só são permitidas de sair à rua acompanhadas da presença masculina.

Até a metade do livro acompanhamos a sina dessas mulheres que nascem para servir a religião e aos homens. Estava convicta que nada seria pior e mais injusto ou injustificável, até ler em detalhes sobre as atrocidades ocorridas no Congo. Nas regiões dominadas pelo islã e pelo Talibã as mulheres lutam por liberdade, educação e trabalho. No Congo elas lutam para viver, para não serem assassinadas de forma atroz. Os muçulmanos por mais que subjuguem e controle suas mulheres, eles, em sua maioria, as protegem e guardam a dignidade delas. No Congo, maridos abandonam suas esposas vítimas de estrupo. Nada é mais desumano do que chegar ao mundo através do Congo.

O depoimento de Addario nos dá dimensão do sofrimento das congolesas e de quanto nós ocidentais somos alheios a essa realidade. “Muitas mulheres eram vítimas de seu local de nascimento. Não tinham nada ao nascer, e nada teriam ao morrer. Sobreviviam da terra e a partir de sua dedicação à família e aos filhos. Entrevistei dezenas e dezenas de mulheres africanas que haviam passado por mais dificuldades e traumas do que a maioria dos ocidentais sequer lê a respeito, e elas seguiam em que frente. Muitas vezes, eu não conseguia conter o choro durante as entrevistas, incapaz de processar a violência e o ódio dirigidos às mulheres que eu testemunhava”, conta.

É impossível terminar o livro e não colocar em perspectiva a vida de privilégios, oportunidades, independência e liberdade por ser mulher branca vivendo em uma democracia. Eu sou completamente livre e dona das minhas escolhas. Posso até usar este espaço para agradecer ao meu Deus por não ser fruto de nenhuma das nações do Oriente Médio, e sobretudo, por não ter sido parida por uma mulher vítima de estupro no Congo.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB