João Pessoa, 11 de fevereiro de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Hoje, abro espaço em minha coluna, para publicar o texto bem oportuno do engenheiro e sanitarista, Sérgio Rolim Mendonça, professor aposentado da UFPB e foi integrante da Organização Panamericana de Saúde.
“Em 11 de abril de 2020 quando escrevi o artigo intitulado “Reflexões na Semana Santa”, citei que no nosso Planeta Azul, estávamos sofrendo com uma nova e moderna pandemia transformada em uma guerra brutal, devastadora e cruel, contra um microscópico inimigo que ninguém via, chamado de coronavírus, a covid-19, que tinha a capacidade de matar em pouquíssimo tempo, milhares e milhares de pessoas. Políticos, cientistas, médicos de todo o planeta, desorientados, sem saber o que fazer contra tão potente inimigo. Mais de 100 mil mortes em todo o mundo. Países considerados mais desenvolvidos e ricos, como os Estados Unidos, com um número muito maior de mortos do que seria esperado. Hoje, essa cifra subiu para mais de 2,32 milhões, a nível mundial, e nosso país já superando 232 mil mortos, em um período de apenas 10 meses.
É nossa obrigação tentar evitar a divulgação de fake news negacionistas, por estarmos cientes da necessidade de contínua cooperação internacional, do risco que representam os demagogos e ditadores, do perigo das tecnologias de vigilância e da enorme falta de lideranças globais.
Embora não possamos comparar o desenvolvimento tecnológico da medicina com a mesma situação na Idade Média, quando a peste negra era tão abrangente e perniciosa que cerca de noventa e nove por cento das pessoas contaminadas morriam. Estima-se que entre 75 e 200 milhões de habitantes da Europa e Ásia morreram vitimadas por essa doença, embora no século XIV, não existisse aviões, nem cruzeiros. Um único hospedeiro da varíola, Francisco de Eguía, em março de 1520, desembarcou no México contaminando grande parte da população. Entretanto, em dezembro do ano anterior (três meses antes), uma epidemia de varíola já grassava em todos os países da América Central matando 30 por cento da população. E nessa época, os centroamericanos não possuíam ônibus ou trens, como meios de transporte. A partir do começo do século XIX, a humanidade foi se tornando mais vulnerável às epidemias devido ao grande crescimento populacional, ao contínuo desmatamento, à falta de acesso a água potável e saneamento, que perdura até hoje, e ao desenvolvimento e à eficácia dos transportes.
Felizmente, o impacto das epidemias nas pessoas decresceu enormemente, apesar dos terríveis episódios recentes, principalmente do ebola e da aids, ocorridos a partir do século XX. Neste século, as epidemias matam numa proporção muito menor comparada com qualquer outra época desde a Idade da Pedra, graças ao desenvolvimento da medicina. E o fator mais importante é a informação e não, o isolamento. Os patógenos dependem de mutações cegas, enquanto que os médicos se apoiam na análise científica da informação.
Durante a peste negra a ignorância era total em relação às epidemias. Até relativamente pouco tempo, as pessoas atribuíam às doenças, geralmente à ação dos demônios malignos ou ao ar impuro, e nem sequer suspeitavam da existência de vírus, bactérias ou fungos. Acreditavam em fadas e anjos, porém não suspeitavam de um enorme esquadrão de vírus mortais que poderia caber em apenas uma gota de água. O que faziam era organizar orações a deuses e santos, na esperança de serem atendidos com suas preces. O resultado da consequência das reuniões com o ajuntamento dessa multidão, era frequentemente mais infecção em massa.
As vacinas, antibióticos, hábitos de higiene aprimorados (o hábito de lavar as mãos com sabão é considerado um dos maiores avanços históricos na área da higiene humana) e uma infraestrutura médica muito superior, deram uma grande vantagem em relação a seus predadores invisíveis. Os estudos genéticos permitiram que os cientistas pesquisassem os manuais de instrução dos próprios patógenos. As novas vacinas pela rapidez que estão sendo produzidas até agora, nos mostram o incrível desenvolvimento da ciência, como também, a enorme capacidade dos laboratórios de fabricá-las em tão pouco tempo, na defesa de nossa imunidade.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou em 1979, após uma campanha global de vacinação bem sucedida contra varíola, que essa enfermidade havia sido erradicada a nível mundial. Quarenta anos depois, em 2019, ninguém contraiu essa enfermidade.
A história nos mostra que é impossível se proteger fechando permanentemente as fronteiras. Embora a quarentena e o toque de recolher sejam essenciais para interromper a propagação da pandemia, paralisar cidades pode levar ao colapso econômico. O isolacionismo prolongado poderá conduzir à derrocada da economia sem oferecer nenhuma proteção real contra doenças infecciosas. O que é mais importante é vigiar as fronteiras entre o mundo dos humanos e aonde vivem os vírus. Uma das mais óbvias condições, é que todas as pessoas a nível planetário tenham acesso a água potável e saneamento. A triste realidade é que existem bilhões de pessoas ao redor do mundo sem acesso aos níveis mais básicos de saúde. Segundo a OMS, uma em cada três pessoas no mundo não tem acesso à água potável, ou seja, cerca de 2,6 bilhões de habitantes.
O coronavírus tem sua origem em animais, provavelmente o morcego. Já sabemos que quando passou para os humanos como hospedeiro, estava pouco adaptado. Agora também já foram confirmadas novas mutações mais perigosas e mais resistentes ao sistema imunológico das pessoas, como as cepas da África do Sul e de Manaus, além das que chegaram recentemente na Inglaterra, com a tendência de se alastrarem rapidamente pela população humana. Um único indivíduo humano pode hospedar trilhões de partículas virais que se replicam continuamente. Cada pessoa infectada oferta ao vírus, trilhões de novas oportunidades para que possa se adaptar melhor à raça humana. Torna-se, portanto, importantíssimo a vacinação urgente a nível mundial.
Enfrentamos uma crise aguda mundial motivada não apenas pelo coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos. Nossos principais problemas não são o coronavírus, e sim, nossos demônios interiores com destaque para o ódio, a ganância e a ignorância. Não podemos reagir à esta crise propagando ódio, explorando a oportunidade para aumentar os lucros, disseminando ignorância, espalhando e acreditando em ridículas teorias da conspiração. O mundo enfrenta uma crise sem precedentes, não somente devida ao coronavírus, como também, pela falta de confiança entre os seres humanos. Para derrotar esta epidemia torna-se necessário que as pessoas confiem nos especialistas, os cidadãos confiem nos poderes públicos e os países confiem uns nos outros. O compartilhamento de informações entre países é muito importante para que seja possível uma rápida derrota da pandemia. Os vírus não podem trocar informações entre si, porém um país pode ensinar valiosas lições a outro que tenha mais experiência com essa enfermidade. Um esforço global no sentido de partilhar informações entre profissionais da área médica, também é mais que louvável.
Segundo o historiador Yuval Noah Harari, (foto) autor de “Notas sobre a pandemia”, Companhia das Letras, 2020, um dos grandes perigos para a humanidade durante a pandemia é a aplicação de novas tecnologias já existentes, que tanto poderão ajudar a eliminar a enfermidade, como poderão se apropriá-las para a instalação de uma ditadura global.
As novas tecnologias com o uso da inteligência artificial (IA) poderão ser um divisor de águas na história da vigilância. Poderão normalizar o emprego de ferramentas de monitoramento em massa em países (um bom exemplo, é o aparelho de medir nossa temperatura instantânea, usada no Brasil durante o acesso a vários estabelecimentos, para evitar que pessoas com febre, talvez devido à essa enfermidade, contaminem seus semelhantes).
O uso da tecnologia de IA, poderá implicar em uma transição drástica de um monitoramento “sobre a pele” para um monitoramento “sob a pele”, que até agora tem sido rejeitada.
Até pouco tempo, quando alguém tocava em um smartphone e acessava um link, o governo queria saber em que exatamente essa pessoa clicou. Agora, com foco no coronavírus o governo quer saber a temperatura no seu dedo e a pressão sanguínea sob sua pele. O perigo é que as tecnologias de monitoramento estão se desenvolvendo a uma velocidade exponencial e o que parecia ficção científica há dez anos atrás, hoje já é notícia antiga.
Vamos supor que um governo qualquer resolva instalar em cada um de nós um chip com um sistema biométrico para monitorar nossa temperatura, pressão sanguínea e batimentos cardíacos. Quando estivermos assistindo a um programa de TV, por exemplo, o governo saberá o que nos faz rir, o que nos faz chorar e o que nos deixa com muita raiva. Sabemos que alegria, raiva, amor e tédio são fenômenos biológicos, tais como a tosse e a febre. A mesma tecnologia que identifica tosses, também pode identificar risadas. A partir daí, os governos, começando a colher nossos dados em massa, serão capazes de nos conhecer melhor que a nós mesmos, tornando-se capazes, não apenas de prever nossos sentimentos, mas também de manipulá-los e de nos vender um político, por exemplo. Em uma ditadura, por meio de uma risada ou de um sentimento de ódio a algum político (pressão sanguínea elevada, leve aumento na temperatura corporal, crescimento na atividade das amígdalas), poderíamos correr sérios riscos. Poderíamos até sorrir e bater palmas mecanicamente, mas se estivermos mesmo com raiva, o regime saberá. Imaginem o perigo!
A epidemia do coronavírus é um grande teste de cidadania. Esperamos, com as vacinas que se aproximam, que possamos afastá-la de nossas vidas e possamos optar por confiar nas informações científicas e nos especialistas, em vez de acreditarmos em teorias conspiratórias sem fundamento e políticos oportunistas. Ainda é tempo de fazermos uso de tecnologias que tenham exclusivamente a precípua finalidade de empoderar os cidadãos, além de reconstruir a confiança das pessoas na ciência, nas autoridades e na midia. Que a experiência com esta pandemia nos amadureça e sirva de exemplo, para enfrentarmos as que virão, provavelmente, ainda neste século”. ( Sérgio Rolim Mendonça)
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