João Pessoa, 16 de fevereiro de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Era um sábado à tarde. Esperava uma aula de francês do cursinho pré-vestibular Águia. Iniciou-se uma conversa de quem espera, sem ter nada para fazer. O jovem, estudante do Liceu Paraibano, também começava a se preparar para o vestibular. Não existia essa prova única nacional, cheia de polêmicas. Não existia redação. Alguns livros indicados: João Simões Continua, Grandes Sertões […], dali, vasculhava-se seu conhecimento de texto e de literatura.
Sem escolas privadas, era um tiro só: UFPB. Duas opções, Campina ou João Pessoa. Coincidentemente, o jovem morava na Capitão João Freire, no Expedicionários, logo início da rua. Meu número, 770, ficava já no final, na transição com Tambauzinho. Reverencio esse bairro, onde fui recebido e lá morei por anos.
A casa de esquina tinha uma garagem, onde Dona Osminda guardava a Brasília amarela. Começamos a estudar juntos. Era nessa garagem, que, invariavelmente, passávamos a manhã estudando. Ele foi meu primeiro amigo na Capital. Companheiro de estudo. Colega de Faculdade. Sua casa, era um ponto de apoio. Vi alguns irmãos crescerem. Sabia que havia perdido o pai, Engenheiro Ernesto Diniz, mas nunca o ouvi falar muito dessa história.
Fizemos dupla de estudo. Depois, abusamos de estudar juntos. Na medicina é assim. A gente vai se cansando. Aí muda de parceiro de estudo. Muda de grupo. Vai procurando algum conforto, para diminuir aquela pressão que acaba se criando sobre os alunos de escolas médicas.
Fernando virou cirurgião geral. Foi para o interior da Bahia. Enfrentou lutas sindicais. Voltou, e se instalou no Hospital São Domingos em Bayeux. E foi operando em todos os hospitais. Mais chegado às urgências, ao batente, como diziam os jornalistas, quando existiam redações e batentes. Quem faz medicina de urgência, compõe o pelotão dos que salvam vidas. Ali, é um contínuo equilíbrio em corda bamba. É vida ou morte.
Nós outros, diminuímos sofrimentos. Vez ou outra, resolvemos alguma situação limítrofe, que indica algum risco maior. O gordinho, não, fez sua profissão de fé, no risco constante. Na minha agenda, mantive, por muitos anos: em caso de urgência, contatar Dr. Fernando Ramalho (foto). E assim eu o tinha. O amigo. Quando meu irmão sofreu um acidente doméstico com comprometimento cerebral, liguei para Fernando. – Vamos para Campina agora! Foi a resposta dele. Naquela hora, eu nem sabia o que fazer. Ele foi meu ego, minha decisão. Meu representante.
Depois da primeira dose da vacina, aparece no nosso grupo que ele estava com Covid-19. Alerta geral. Orações. Pedidos. Súplicas. É que nos mantemos atentos aos movimentos de cada um; e apesar dos anos, continuamos unidos, digamos. Para mim, receber a notícia de que meu amigo se foi, não teve nenhuma diferença de que se fosse um irmão. Triste, respirei e lembrei que Gleide, Ernesto, Muriel, Laene e sua netinha, também poderiam respirar o ar puro dos que acreditam na eternidade. Fernando, sedado, não soube que partira. Mas estava, finalmente, livre de todas as angústias que temos que pagar, para que fiquemos mendigando um pouco mais de vida. Como ficaremos eu e meus companheiros, que desde os anos 1980, militamos na Medicina?
Nunca vou esquecer: era um sábado já de noite, quando meu amigo também se foi. Fazer companhia aos bons de coração que, apressados, saíram um pouquinho antes de nós. E nosso carnaval, como símbolo da sua constante alegria, começou, tristemente, pelas cinzas da Covid.
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OPINIÃO - 22/11/2024