João Pessoa, 25 de fevereiro de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
O enfretamento do Clássico necessita, além de uma orientação segura, de duas coisas: hábito de leitura e persistência. Digo enfrentamento, pois a leitura, em si, não é uma atividade fácil e a leitura do Clássico é menos ainda. Poucos são os autodidatas. Ainda assim, estes, os autodidatas, necessitam de alguma coisa que os direcione como uma espécie de tropismo para o Clássico.
O hábito da leitura é de grande importância e de preferência deve ser formado desde a infância. Quando estive pela primeira vez na França, passei 36 dias em casa de uma família amiga, em Cergy-Pontoise (foto), cidade que faz parte da grande Paris. Não me cobraram nada. Eu tinha dormida, café da manhã, jantar e roupa lavada, apesar de ter levado roupa suficiente para o período. Passava o dia fora, flanando por Paris, e fazendo os reconhecimentos necessários à minha profissão de professor.
Mesmo que não me cobrassem nada, decidi que poderia ajudar na louça do jantar e do café, e, sobretudo, nas lições do menino da casa, que tinha entre 9 e 10 anos de idade. Eu me comprometi a dar o reforço de matemática e de língua francesa. A minha surpresa não foi a matemática – aritmética básica, que não me exigia qualquer esforço –, mas a língua francesa. Não que houvesse qualquer problema em entender a língua, que eu já falava e escrevia há bastante tempo. A surpresa veio do livro do menino. O livro de língua francesa apresentava textos dos grandes escritores franceses, para leitura, compreensão e exercício de língua e de interpretação. Claro, eram textos adequados à idade, mas lá estavam Dumas, Hugo, Lamartine, entre outros. A verdade é que a escola tem a obrigação de sistematizar esse processo e os pais o dever de continuá-lo, em casa, estimulando a leitura e ajudando na realização das tarefas. Estas ações têm-se desviado no Brasil, já há algum tempo, com raríssimas exceções entre as escolas e os pais.
Muitos devem ter estranhado o título deste texto. É aí que entra a explicação da necessidade da persistência. Eu tinha uns 10 anos e acabara de assistir ao filme Ulysses, de Mario Camerini, no cinema São José, que ficava a poucos metros de minha casa. Eu morava no final da Avenida Coremas e o cinema situava-se na confluência da Senador João Lira com a Floriano Peixoto. Entusiasmado com o filme e com a cena do arco, pulei o muro da casa do vizinho da frente, para quebrar uma vara de cróton e fazer dela o arco de Ulysses. Por azar, caí em cima de um caco de vidro que cortou o meu pé. Para encurtar a história, levei uma surra da minha mãe, Dona Zezé, por ter pulado o muro dos outros e por ter-me ferido.
O fato de ter apanhado por causa do Clássico não diminuiu a minha motivação e encantamento por eles. A surra deu-me a clareza de que eu não deveria mais fazer a estripulia que fiz, sobretudo, não invadir a casa dos outros. Deu-me a noção exata do respeito que se deve ter com relação ao que é do outro. Mas o amor ao Clássico permaneceu, foi incentivado e continua florescendo.
Eu poderia, de modo pomposo, dizer que comparei a minha invasão à casa do vizinho e a punição dela decorrente com a invasão dos pretendentes à casa de Ulysses e a sua consequente punição. É tentador pensar assim, mas é mentiroso, pois não foi isso que eu pensei. Não tinha idade para refletir e associar situações, de modo a interpretá-las. Só mais tarde é que vi o resultado da minha ação fracassada: o ensinamento de minha mãe e minha persistência me fizeram vencer as adversidades. Não consegui na época o arco de Ulysses, mas o meu bom amigo Flávio Tavares, muito tempo depois, presenteou-me com um, num magistral bico de pena.
Os Clássicos nos interpelam e nos desafiam. Se nos afastamos deles porque eles exigem paciência e persistência, ficaremos apenas com as cicatrizes de uma tentativa frustrada. E são as cicatrizes que nos impelem à ação. Ulysses que o diga.
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TURISMO - 19/12/2024