João Pessoa, 10 de março de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
O homem é o único animal que viaja e ri, assegura um lúcido pensador. Provavelmente Michel de Montaigne (foto), com sua larga e rica sabedoria.
Ri, sem dúvida, é fundamental. É bom para a saúde e faz o corpo se movimentar, tremer em suas escalas musculares e bioquímicas, alegrando o espírito, servindo ao prazer e estimulando a imaginação. Vezes até destilando o delicioso veneno da criticidade, do humor, da ironia e do sarcasmo.
Já viajar, não sei. Há os que veem na viagem uma experiência essencial, uma forma de lazer, um exercício da fantasia, uma poética do espaço, uma pedagogia, enfim, a aventura máxima. Conheço gente que, se não viajar, pelo menos uma ou duas vezes por ano, adoece e morre. Para estes, a viagem é uma narrativa a ser escrita sempre no mapa das geografias ofertadas. Viajar é viver…
Comigo, não obstante, isso não ocorre. Gosto de ri, mas detesto viajar. E sabem por quê? Porque não suporto sair de minha rotina. Adoro minha rotina. Se saio dela, me desorganizo todo; me desparafuso, me estresso, piro mesmo, como se diz na gíria, numa rotação de emoções desencontradas e sensações desconcertantes que me aniquilam por inteiro. Sempre que retorno de uma viagem, passo três ou quatro dias completamente perdido de mim mesmo, desnorteado, sem conseguir recuperar, de imediato, a lógica necessária para dar continuidade às tarefas de sempre. Somente aos poucos vou me reencontrando na página que lia, no bar que frequento, nas aulas que ministro e nos horários que devo cumprir, retomando, assim, as coisas comuns de que se tece a impalpável epifania da rotina.
Por isto, entre a rotina e a aventura, para lembrar um belo título de Gilberto Freyre, prefiro a rotina. Seu sabor monótono, sua mesmice miraculosa, sua assepsia melancólica, seu tédio insaciável, enfim, sua clausura de pequeninos afetos e de sagrados rituais me dão a convicção de que estou vivo e de que – parece – há algum sentido em navegar no barco bêbado da existência.
Amo estes versos do poema “Herói”, de Francisco Carvalho, poeta cearense: “(…) – Herói não é o aventureiro que fez xixi na lua. // – Herói é o que vai todas as tardes à padaria / mais próxima buscar o pão ainda morno / para testemunhar o mistério da vida”. Ou seja, herói não é o que se entrega ao sortilégio da aventura dos grandes acontecimentos, mas aquele que habita o território mágico do cotidiano, as esferas indizíveis da rotina, com seu precário arsenal de atos miúdos, repetitivos, inadiáveis. Casar, pagar impostos, abrir conta bancária, levar os filhos à escola, fazer o seguro de vida, consultar o dentista e outras ações e outros gestos, tudo, enfim, é milagre!
Comer o mesmo feijão, assar a mesma carne, ouvir o canto do mesmo pássaro, ler e reler o mesmo livro, beber o mesmo conhaque, escrever o mesmo poema, amar na mesma cama, beijar a mesma mulher, cultivar os mesmo amigos, sonhar os mesmos sonhos e voltar, voltar sempre, à mesma casa, eis os critérios enigmáticos que fertilizam o sabor da rotina.
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OPINIÃO - 22/11/2024