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Kubitschek Pinheiro/MaisPB
Roberto Menescal já disse muitas vezes que Nara Leão (1942-1989) era a cantora mais inteligente do Brasil. Numa carta de Glauber Rocha para Cacá Diegues, veio outra assertiva: “Ninguém pode com Nara Leão”, frase que virou nome do livro do jornalista Tom Cardoso, com selo da Editora Planeta.
Tom mostra que a artista permanece viva, diante das inúmeras descobertas do autor. O livro é mais intenso e desperta uma vontade de lê-lo sem intervalos.
Nara Leão foi uma das artistas mais importantes e influentes da cultura brasileira, não só pela sua obra, mas pelo que representou para a mulher e a sociedade. Filha caçula de dr. Jairo e dona Tinoca e irmã da modelo e famosa escritora Danuza Leão, a Nara tímida, quieta e afoita, marcou como uma das produtivas intérpretes da MPB dos anos 1960 aos 1980, além de ser responsável por definir os costumes e a expressão política da época. “Foi símbolo da reação à ditadura de 1964, sem nunca pretender ser coisa alguma”, escreveu Paulo Francis após a morte da cantora.
Em “Ninguém pode com Nara Leão”, já nas livrarias de todo país, uma indicação de boa leitura nessa pandemia. Tom Cardoso reconstrói a vida da cantora que participou dos mais importantes movimentos musicais surgidos a partir da década de 1960, a Bossa Nova, que reunia o melhor time no apartamento da família de Nara, em Copacabana. Nara deixou a bossa nova para se juntar à turma politizada do Centro Popular de Cultura CPC (da UNI) e do Cinema Novo e foi a primeira estrela da MPB a falar abertamente contra a ditadura militar. O livro mostra Nara Leão como uma mulher de ontem, hoje e sempre.
Seus posicionamentos e direções artísticas não eram planejados, mas guiados por uma inquietação que a levou a fazer exatamente aquilo que queria, sem a preocupação de conseguir sucesso ou ser fiel a um movimento. Nara cantava muito e isso já é um sinal de liberdade.
Nara é a primeira personagem feminina de Tom Cardoso e o interesse em escrever a sua biografia surgiu através de uma dica de um amigo, o jornalista e critico musical. Tárik de Sousa.
Tom praticamente disseca o tema Nara e seus leões, mostrando outras qualidades e aborda ainda essa transição do samba canção para bossa nova e mostra a Nara e seu palanque, o palco, a luta e o câncer que a matou. O livro abre possibilidades para possamos conhecer uma mulher que era tida como tímida, mas de tímida não tinha nada. Aliás, por que ninguém podia com Nara? Isso você vai saber lendo a entrevista que o autor concedeu ao MaisPB.
MaisPB – Você é autor das biografias do jornalista Tarso de Castro, do jogador Sócrates e do político Sérgio Cabral. Nara Leão já era uma ideia antiga?
Tom Cardoso – Não, foi logo depois de escrever o livro sobre Sérgio Cabral, o político, que é anterior ao da Nara. Eu fiquei naquela angustia de todo biografo – qual seria meu próximo personagem… Fui até a casa de Tarik de Sousa, (crítico de música), e ele tem por hábito, desde os anos 60 recortar tudo que sai na imprensa, sobre os artistas brasileiros. Ou seja, tem um arquivo muito rico. A ideia inicial era escrever um livro sobre Raul Seixas e fui lá a procura desse arquivo. Ele me deu uma bronca, dizendo que tudo já se tinha dito sobre Raul e que eu precisa escrever a biografia na Nara Leão, que é uma personagem muito pouco explorada. Realmente, é uma personagem fantástica, que participou de vários movimentos brasileiros e precisava de uma nova leitura.
MaisPB – Quanto tempo durou a pesquisa? Foram muitas entrevistas?
Tom Cardoso – Entre pesquisa e escrita foram dois anos.
MaisPB – Em “Ninguém pode com Nara Leão”, você nos apresenta uma artista ativista, que era engajada em movimentos musicais na década de 60, além de várias atuações. Vamos falar logo sobre isso?
Tom Cardoso – Como falei acima, ela participou de grandes movimentos. Além da Bossa Nova e do Tropicalismo, que ela teve uma participação ativa, ela foi fundamental para o projeto Opinião, o espetáculo musical, talvez o mais importante de sua época e pouca gente sabe que Nara além de ter participado, junto com Ze Kéti (1921-1999) e João do Vale (1933-1996), ela inspirou o espetáculo, porque ela já tinha grava o disco “Opinão” (de 1964,) Muita gente acha que o disco veio depois, mas não, ele inspirou aquela turma toda do CPC, Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho), entre outros. Por isso Nara veio da bolha da Bossa Nova e se abre totalmente para os movimentos de cultura a ponto de influenciar o musical com Vianinha.
MaisPB – Aliás, o titulo do livro já é uma provocação – e nos remete a uma planta aqui do Nordeste – “comigo ninguém pode”. Era essa a intenção, de provocar, de mostrar, a nova e anterior Nara Leão?
Tom Cardoso – Eu nem sabia dessa planta. Na verdade, o título do livro saiu de uma carta que Glauber (Rocha) escreveu no exílio para o Cacá Diegues e lá está registrado um elogio a Nara, falando das duas mulheres que moravam dentro dele. (O texto da carta está no livro) e em determinado momento, Glauber diz: “Ninguém pode com Nara Leão”, e mostra a dimensão do quanto essa mulher era forte e achei que o título do livro estava ali na carta de Glauber.
MaisPB – Tocante a assertiva, o fato dela ter sido a primeira artista a falar contra a ditadura. Só isso já merecia uma nova biografia?
Tom Cardoso – Sim, com certeza.
MaisPB – Você chegou a ler outras biografias dela?
Tom Cardoso – Li tudo. Mais de três livros, um do Cássio Cavalcante, que é uma biografia intensa. Li o livro do jornalista Sérgio Cabral, muito bom, lançado em 2000. Mas achava que no Brasil, eu tinha essa ideia de que um autor escreve sobre uma determinada pessoa e vira dono da personagem. Ninguém se encoraja mais a escrever. Isso é uma coisa brasileira. Nos Estamos Unidos existem mais 50 biografias do Bob Dylan. Acho que nenhuma biografia é definitiva, porque a personagem é muito ampla, complexa e vale muitas leituras. Eu queria fazer a minha leitura que não é definitiva.
MaisPB – Assisti sua live com Roberto Menescal e gostei muito. No seu livro verificamos o elo entre eles, Roberto sempre fala com carinho sobre Nara. E temos o liame entre Nara e o poeta Ferreira Gullar, a quem sugeriu que largasse a mulher e viajasse com ela pelo Brasil. Vamos falar sobre esse fato?
Tom Carvalho – O caso na Nara com Ferreira Gullar, já é levantado no livro de Sérgio Cabral e outras fontes me confirmaram. Foi só “love”, eles não tiveram um namoro. Eles tinham o entendimento que nos 60 era tudo muito natural, muita gente se relacionava mesmo sendo comprometido e Ferreira Gullar era. Mas a Nara chamou ele para fazer uma pesquisa pelo Brasil e ele não topou, tinha emprego e família para cuidar, mas foram amigos até o fim da vida de Nara. Ele escreveu textos para os discos dela, uma pessoa muito importante na carreira da artista, sobretudo nessa virada da Bossa Nova para essa turma mais engajada do CPC, Nara se aproximou muito de Ferreira Gullar, Ruy Guerra e amadureceu muito como artista.
MaisPB – No livro também encontramos Nara uma menina triste, recolhida. Isso foi arrastado pela vida toda da artista?
Tom Cardoso – A Nara na verdade não era uma mulher triste. Ela teve os problemas da adolescência, porque ela tinha a irmã mais velha (Danuza Leão) que era exuberante, e ela levou isso para a vida toda. Até a timidez ela superou. Ela chegou a cantar de costa por conta da timidez. Ela gostava de dormir cedo, não bebia, preferia a vida dela no estúdio, gravando discos. Acho que ela foi uma mulher muito feliz, com suas relações profissionais. Ela tinha uma certa angustia de nunca estar satisfeita, mas isso foi bom para carreira dela, que partiu para outras coisas, ela estava sempre em constante mutação.
MaisPB – Nara casou com Cacá Dieges e com o cineasta se exilaram na França e tiveram dois filhos, Isabel e Francisco. O que eles acharam desse novo livro?
Tom Carvalho – Olha o Cacá mandou um vídeo ( pelo whatsapp) dizendo que adorou o livro, gostou muito. Agradeceu pelo respeito que eu tive a Nara. Um elogio do Cacá, que viveu perto com ela, foi muito bom para mim. Os dois filhos, Isabel e Francisco que moram em Londres ainda não leram. Eu soube que Danuza também gostou.
MaisPB – É incrível a cena em que ela está na janela de um hotel com Caetano Veloso olhando a passeata contra a guitarra elétrica, coisa da cabeça de Elis Regina e Geraldo Vandré, endossada por Gilberto Gil. Vamos relembrar esse momento?
Tom Cardoso – Ela foi uma das primeiras a sacar o quanto aquilo era ridículo. Caetano escreve sobre isso no seu livro Verdade Tropical, o quanto a Nara enxergou aquilo muito antes dos tropicalistas. Gil estava na passeata e meses depois encabeçava o Tropicalismo. Nara achava tudo aquilo uma bobagem, que a Jovem Guarda estava tirando o espaço da MPB, que música americana também. Ela achava que o importante era conteúdo, a qualidade, tanto que é foi a primeira artista a gravar um disco inteiro dedicado a Roberto e Erasmo, numa época que eles dois eram cafonas.
MaisPB – Aliás, foi Nara, quem abriu muitas portas do Sudeste para os talentos do Teatro Vila Velha, recebendo Caetano, Gil, Gal e Bethânia – essa, hoje com 56 anos de carreira, tendo começado por substituir Nara no show “Opinião”. Ou seja, Nara alavancou estrelas, né?
Tom Cardoso – Ela por ser curiosa e generosa revelou muita gente, Chico (Buarque) Caetano (Veloso), Fagner, Sidney Miller, Macalé, uma turma grande. Quando ela foi para a Bahia levou um gravador para saber o que tinha de bom por lá em Salvador. Ela foi na casa do Carlos Coqueijo, que era uma espécie de mestre de cerimonia da cultura baiana, promovia saraus literários Roberto Santos que era produtor e amigo dela levou Nara ao Teatro Vila Velha e ali ela conhece Gil, Bethânia, Gal, Caetano e Tom Zé e fica maravilhada. Até que ela a convida a Maria Bethânia para substituir ela no Opinião, que tem uma carreira grandiosa pela frente. Pela inquietude dela, ia descobrindo pessoas, talentos….
MaisPB – Incrível essa passagem do livro que Nara pede e Chico Buarque compõe a canção “Com Açúcar, Com Afeto”, a primeira de muitas em que a mulher assume a narrativa na primeira pessoa, que seguiram outras canções dele nesse sentido, ou seja, ele canta como se fosse elas. Poderia relembrar esse fato?
Tom Carvalho – Na verdade, a Nara pede ao Chico para fazer uma música em resposta a Amélia de Ataulfo Alves, aquela mulher submissa e ele compôs “Com Açúcar e Afeto” e, paradoxalmente Chico fez uma música anti machista, se recusa a cantar e coloca uma mulher (Jane Morais) para cantar no disco dele. Numa entrevista para a Revista PlayBoy, o Chico reconheceu isso.
MaisPB – São tantas coisas sobre Nara, que só agora seu livro traz à tona. Vejamos – final da 1970, ela rodou o país numa Kombi, fazendo shows nos rincões do Brasil, ao lado de uma nova e renovadora turma do Choro Carioca, entre eles o violonista Raphael Rabello, um garoto que também partiu cedo. Fale-nos disso, dessa coisa da artista levar seu canto, sua ideologia aos 4 cantos do nosso país?
Tom Cardoso – Quando ela gravou Roberto e Erasmo, ela chamou a turma do “Choro”, ela queria arranjos diferentes. Por exemplo, “Cavalgada” ela verteu para o Choro, que uma coisa de vanguarda, diferente. Era gostava muito dessas experimentações. Ela viajou o Brasil inteiro no Projeto Pixinguinha com Raphael Rabello, que tinha 17 anos, Maurício Carrilho, eram pessoas do Novo Choro. Partiram de Kombi pelo Brasil a afora. Ela tinha essa vontade de sempre experimentar coisas.
MaisPB – Nara morreu há 32 anos por conta de um tumor no cérebro, teria feito muito mais, não achas?
Tom Cardoso – Ela morreu muito cedo. Ela teria feito muita coisa. Ela gravou a despeito desse problema, que eu falo no livro, uma passagem delicada, porque ela ficou muito tempo sem saber desse tumor e ela não queria saber, apesar do tumor grave, ela teve qualidade de vida. Só final que ela começou a sofrer, a esquecer as letras e passou a ter limitações graves. Roberto Menescal me contou, que ela estava pensando em gravar um disco com canções indígenas e um todo em homenagem a Caetano Veloso.
MaisPB – Mudando de assunto, você acredita que temos esperança, que as coisas vão melhorar, apesar da lentidão das vacinas e desse governo?
Tom Cardoso – Se voltarmos no tempo, em 1966, Nara comprou uma briga com os militares numa entrevista para o Diário de Noticias, dizendo que o exército não servia para nada. Ela fez essa afirmação sem conhecer o Jair Bolsonoro. Eu torço, claro, com esse desgoverno, esse genocida no poder, acho que temos que torcer para que 2022 chegue logo, para que ele pule fora, para que possamos fazer uma grade frente progressista para tirar a extrema direita do poder.
MaisPB – Tem algum projeto novo na cabeça?
Tom Cardoso – O meu próximo livro será sobre Antônio Magalhães, o político baiano, controverso, muito distante da Nara Leão. É um desafio, vai sair pela Editora Intrínseca no ano que vem
MaisPB
OPINIÃO - 22/11/2024