João Pessoa, 07 de abril de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
É assim mesmo que o chamo, pois fui amigo de seu pai, Archidy Picado, e o vi ainda meninote, sem saber um pedacinho sequer da vida, da vida adulta e adulterada que levávamos à beira bares, nas longas noites de Philipeia de Nossa Senhora das Neves.
Terminada minha palestra sobre a literatura latino-americana no último Festival de artes em Areia, ele, que compunha, com mais 10 ou 12 gatos pingados, o seleto auditório, veio de lá de seu canto e me deu de presente seu mais recente livro, o insólito, picante e saborosíssimo conjunto de aforismas, intitulado “Ditos, bem ditos, maus ditos, reditos e jamais ditos de São Salabaussírio: o décimo terceiro apóstolo”, num gesto de gentileza e generosidade pouco habitual nos vaidosos e acacianos escritores da província, sobretudo os escritores jovens, com sua perfunctória sabedoria de almanaque.
Archidizinho figura numa grei de estirpe rara e plurivocal, em contexto paraibano, pois transa, com toda desenvoltura possível, o traquejo rítmico de múltiplas linguagens, numa operação intersimiótica permitida a poucos na flexibilidade ambivalente das estocadas criativas.
É como um Jomard Muniz de Britto, inquieto e irreverente perante a casca dos signos; um Bráulio Tavares, com seus sete fôlegos de artista multimídia e escrevinhador dos lajedos sertanejos e das luzes psicodélicas das cidades do mundo; é como Waldemar José Solha, com suas artimanhas romanescas defloradas pelas serpes lúdicas de citações sem fim e as cores multifárias de quadros, cenas e performances que a vida e a arte nos revelam no quadrilátero de suas róseas possibilidades. Seu pai mesmo era assim, pois mesclava, no miolo do talento, as figuras distintas, porém unidas na fusão do estoque expressivo, do pintor, do professor, do escritor, do crítico, do poeta e do articulista das coisas toscas, torpes e trágicas do cotidiano.
Archidizinho não se faz de rogado e rega a raiz genética na fibra polivalente de sua viçosa criatividade. Desenhista, cineasta, pintor, quadrinista, escritor, livre pensador, crítico de cultura, músico, compositor e arranjador, blogueiro e novelista, anda por aí, atento a tudo que é linguagem, certo de que viver é criar; certo de que criar é respirar os ares invisíveis do passado, do presente e do futuro, seja numa nota dissonante de uma harmonia experimental, num bico de pena que contempla, em manchas de claro e escuro, os vácuos impreenchíveis do espírito humano, seja no tecido fabuloso da ficção, com seus enredos mágicos e seus personagens intempestivos.
A ele devo uma das minhas mais queridas homenagens. Fez-me personagem de uma das suas histórias, dando-me vida vicária e mais consistente em termos de forma, garantindo, assim, a durabilidade de um nome, pelo menos na memória de algum leitor. Depois disso, qualquer coisa, vinda não sei de onde, nem sei por que, nem sei como nem sei quando, imprime algum sentido a essa vida anônima, cinzenta e esquecida de escritor provinciano. De resto, e sempre mui grato a Archidizinho, filho de meu inesquecível amigo, Archidy Picado, como diz São Salabaussírio, no último de seus aforismas: “Penso. Logo me calo”.
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TURISMO - 19/12/2024