João Pessoa, 09 de abril de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Muitas profissões lidam com materiais, substâncias, seres animados e inanimados. Para tanto, as pessoas realizam cursos em universidades e são credenciadas a exercerem a profissão que escolheram. Todas elas, por lidarem com o ser humano, possuem uma responsabilidade dobrada.
Não quer dizer que as outras não requeiram esse atributo, mas para as que lidam com a vida, os efeitos de suas ações são imediatos. E implicam em critério e consciência de seus próprios atos, numa intervenção invisível. Para o profissional, existe a formação que lhe dá a estrutura de competência técnico – cientifica de agir e interferir na vida dos outros. Mas, além desses componentes, entram a consciência, a dedicação, amor à causa, a sensatez, qualidades que não se aprendem nos bancos acadêmicos, dizem da formação de cada um. Ai entram o id, o ego e o superego, segmentos que formam a natureza psíquico-mental do homem, que o faz único em agir e reagir sobre fatos e fenômenos, expressando seus pensamentos. Digo assim, porque existem profissionais e profissionais. Nesse sentido, observa-se que essa intervenção apresenta resultados diferentes, embora muitas vezes diante dos mesmos problemas. Nessa direção não há padronização.
Há tempo não avistava Cléa Moura Martins, colega do curso colegial, assim chamado à época. A pandemia proporcionou-nos encontro virtual. Então foi o momento de fazermos relatórios de nossa linha do tempo. Ela formada em Serviço Social, aposentada, se dizia extremamente feliz com a carreira que elegeu para atuar profissionalmente.
Profissão regulamentada no Brasil no ano de 1957, cresceu rapidamente no campo das ciências sociais e recebe a contribuição da sociologia, psicologia, economia, ciência política, antropologia, direito, ética etc. Foi reconhecida no valor da sua participação sobre a classe trabalhadora, e nas transformações sofridas pela sociedade brasileira. Enfim atua no planejamento, gestão e execução das políticas públicas, programas e serviços sociais. Os profissionais dessa área trabalham em diversos setores como saúde, educação, indústria e segurança, entre outros…
Conversei longamente com Cleinha, como a chamamos na intimidade. Hoje, feliz e com a sensação do dever cumprido. Despertou-me a curiosidade de saber mais profundamente a real satisfação que a deixava em estado de graça, mesmo já inativa. Isto era expresso no seu entusiasmo e na emoção ao falar de sua história. Disse-me: “eu escolhi minha profissão por amor e por vocação”. Descobriu essa vocação numa visita que fez a um leprosário. Muita gente, dizia ela,” tem a ideia que o Serviço Social vê o outro como coitadinho, mas não tem nada a ver essa história. É um ser humano com uma riqueza em potencial que precisa ser descoberto por ele mesmo”.
Trabalhou em diversos setores do Estado, em lugares diferentes. O que mais a deixou realizada foi sua passagem no hospital público Edson Ramalho (foto), que recebia pessoas humildes e muito carentes, no qual teve oportunidade de criar e implantar o Serviço Social. Lá trabalhou por 12 anos. Ofereceram para ela diversos cargos federais, estaduais e municipais que apresentavam mais vantagens e regalias do que aquele em que se encontrava, tendo rejeitado todos. Considerava o ambiente do hospital como a continuação de sua casa. Dizia: “Isto atribuo aos dois diretores da minha época que dispensaram apoio e deram-me a oportunidade de exercer meu trabalho dentro da melhor lisura profissional e assistencial”. Exerceu a função de chefe do setor mas nunca recebeu gratificação ou alguma remuneração pelo que fazia. Os diretores lutaram junto aos setores competentes para que obtivesse melhorias, mas, infelizmente, não conseguiram. Mesmo assim, essa situação não retirava o seu entusiasmo. Era movida, sensibilizada e comprometida com a situação dos pacientes. Criara laços afetivos junto a equipe do hospital e aos pacientes. O que realmente a fez permanecer? Assim narrou: “Tenho diversos casos gratificantes em minha vida que vivenciei no hospital e poderiam ser contados, mas vou referir- me a dois, que me marcaram muito, só para que tenha ideia porque sinto-me tão feliz.” Havia uma enfermaria no nosocômio que abrigava pacientes com câncer em fase terminal. A diretoria administrativa entendia que devia acabar com essa enfermaria, porque o Estado achava que não havia muito sentido, nem interesse. Não dava lucro e compreendi que financeiramente era prejuízo para o Estado sustentar a situação. O que ia de encontro a seu pensamento. Batalhou, questionou e brigou, no bom sentido, junto às autoridades para mantê-la. Durante sua atuação a enfermaria permaneceu aberta mas, logo que saiu, a suprimiram.
Continuou: “Vou contar um caso que comoveu-me. Havia uma paciente com CA de colo uterino, no grau 4, em fase terminal, com forte odor fétido, exalando mal cheiro, mas encontrava-se consciente. Solicitou-me que eu conseguisse junto aos diretores que seu filho, que estava recolhido em uma penitenciária, fosse liberado para ir ao hospital, a fim de despedir-se da mãe. E acrescentou: “Eu sei que vou morrer mas queria que esse meu último desejo fosse satisfeito e eu só tenho você a quem posso recorrer”. A princípio, eu tranquilizei-a dizendo que ela não ia morrer, mas que, eu ia tentar fazer o possível e o impossível para que seu desejo fosse satisfeito, uma vez que não dependia só de mim. Foi aí que dei um telefonema ao diretor da Cadeia, identificando-me como Assistente Social do hospital, e ele muito gentil falou –me: “Tem que ser breve. Vou mandar o apenado e ele vai com dois oficiais de justiça”. No outro dia ele chegou e foi até a minha sala e eu preparei-o para o encontro com sua mãe. Disse-o que não queria saber do problema dele com a justiça. Ele tinha que pagar pelo que fez perante a lei. O propósito ali era a despedida da mãe que estava no leito de morte. Disse-lhe: Este momento não vai se resumir apenas a uma despedida, mas que devia assimilar os conselhos de sua mãe e que representassem uma mudança na sua vida. Falei o que julguei necessário. Você está preparado? Então vamos encontrar sua mãe. Uma coisa que me emocionou, foi a sensibilidade do diretor que mandou os soldados a paisano em respeito a paciente, mãe do apenado. Isto achei notável e depois, agradeci ao diretor e falei nesse episódio. Em muitas cenas que vivi lá, essa foi bonita, emocionante e marcante. Ficamos na porta, eu e dois soldados. Não havia perigo que se evadisse, pois as janelas eram de basculantes. Falei com a enfermagem para colocar à paciente num leito mais reservado, no fim da enfermaria. E mãe e filho puderam falar mais à vontade. Abraçaram-se, choraram e pediram perdão. Ambos, estavam cônscios que não mais iriam se ver, aquele momento era derradeiro. Só no infinito da eternidade. Penso que o filho ficou contrito com os conselhos de sua mãe. Não sei se na prática foram acatados, só o tempo dirá. E quando acabou a conversa, e seu filho cruzou a porta da enfermaria ela exalou seu último suspiro e partiu.”
Outro caso diz Clea: “que me marcou foi quando sai do hospital e fui trabalhar num órgão do Estado, que desenvolvia um projeto do governo que se intitulava “O trabalho liberta” que dava oportunidade ao apenado que estava na condicional e no regime semiaberto e fiquei responsável com mais outra Assistente Social e duas psicólogas para o acompanhamento técnico-psico-social de apenado, que prestavam serviços em órgãos públicos. Era um trabalho desafiante e difícil. Muitos foram chamados e poucos escolhidos. Uns se evadiram, outros voltaram à prática do crime, foram presos e não voltaram mais. Todavia teve um deles enquadrado no Código Penal em artigo o pior possível. Foi preso por assalto à mão armada seguido de morte. Ao entrar em contato com aquele homem eu senti que ele não tinha índole ruim. Aquilo foi algo de momento impulsivo. Era jovem, bebia. Acompanhava-se com gente traquejada no mundo do crime e da bandidagem e condicionou aquela situação em que se encontrava. Quando caiu a ficha ele ficou preso, mas nunca ficou isolado e não regrediu. Tinha dias trabalhados, era disciplinado. Ele pedia sua liberdade condicional mas nunca saia. Então falou comigo e eu fui ver se havia algo errado. Conversei com o diretor do sistema penitenciário, expus a situação para ele saber o que se passava, porque não havia justificativa para não sair a condicional dele. O diretor verificou e descobriu que havia um homônimo que tinha uma ficha suja e criminosa na Penitenciaria Modelo e quando puxava sua ficha não vinha a dele e sim a do outro. Descobriu-se o equívoco. E ele conseguiu, porque se não fosse isso ia demorar muito para alcançar a sua saída do sistema prisional. Depois recebo um telefonema dele dizendo: “Estou feito um passarinho. O que sou hoje, devo tudo a senhora”. Eu disse: Não, você nada deve a mim e sim a você mesmo que provou que é uma pessoa de boa índole; o que aconteceu foram as circunstâncias que fizeram você ir ao fundo do poço. Você vai sair dessa e acredito em você. Ele era bem jovem. Já casado organizado com família e filhos. E assim, foram 7 anos que passei nesse trabalho junto com as colegas, orientando e acompanhando. Aposentei e despedi-me deles. Um dia estava em casa quando o telefone toca. Era aquele apenado que tinha ajudado em sua liberdade condicional. Já estava livre, pagou a pena e desligado do programa. Falou: “hoje é a minha posse na repartição pública, não por prestigio, por político nem por competência, mas porque acreditaram em mim. Estou ligando para agradecer tudo a senhora. O que sou hoje devo tudo a senhora.” Eu repeti, a mim não. Eu vibro por você. Ele disse: “Eu sei e é por isso que estou lhe ligando”. Foi um final feliz
Verifica-se, no limiar da história, que Cleinha foi uma pessoa abnegada, comprometida em ajudar os mais humildes e necessitados. Vitoriosa como esposa, mãe e avó, com sua bela família, nessa missão ela parece ter encontrado a razão de seu viver. Isto foi demonstrado com suas ações. Bem nascida, de família tradicional paraibana e com influência política, que podia tê-la colocado nos mais altos cargos na área de sua atuação, nunca usou dessas prerrogativas para obter vantagens e benesses. E se referindo ainda ao seu exercício profissional discorreu: “Foi a razão da minha vida ser Assistente Social. Não juntei dinheiro mas o que fiz deu-me satisfação e alegria e o que tive deu para viver condignamente”. Continuou: “Recebi um telefonema de um capitão perguntando se fui eu que implantou o Serviço Social no Hospital Edson Ramalho? Disse-lhe: fui eu. “Vamos lhe prestar homenagem. Amanhã é o dia do Assistente Social. A senhora tem algum compromisso para amanhã?” Falei: Não, mesmo se tivesse abdicaria para comparecer. O convite muito me honra. Porque como diz o ditado “rei posto, é rei morto” e ser lembrada e reconhecida pelo nosso trabalho, depois de tanto tempo, para mim é coisa extraordinária”.
Veja como são as coisas, depois de ouvir a história de vida de Cleinha, constatei que a conhecia superficialmente e nas conversas que mantivemos e depois de tantos anos distantes, vim conhece-la mais profundamente em seu âmago e sentir a criatura de dimensão humana comprometida com o outro. Fez-me refletir que nós não nos conhecemos. Desconhecemos o que vai no fundo de cada ser. Penso que isso ocorre com todos nós e quando chega a hora vem as revelações, como nessa pandemia, que está nos proporcionando esse momento revelador de nós mesmos, em que estamos nos desnudando, tirando o sentimento da alma para que seja descoberto por outros. Foi o caso de minha amiga e colega que descortinou sua vida para mim, despertando-me o desejo de fazer uma crônica para divulgar quão humana e sensível ela é, na expressão mais profunda da palavra – o amor ao outro.
Parabéns! Você tem todos os méritos para ser homenageada.
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OPINIÃO - 22/11/2024