João Pessoa, 21 de abril de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
“Guerra em paz”, conjunto de fotografias de Guy Joseph, lembra “Guerra e paz”, o monumental romance de Tolstói. Lembra, pela geometria lúdica dos vocábulos na esfera fonética, mas também pelos paradoxos semânticos que se ensaiam na moldura linguística.
A fluidez acústica das palavras, em ambos os títulos, não elide o ardor e a aspereza do sentido que está embutido na sua inesperada junção. Uma, apontando para o arrastado movimento de uma narrativa épica, também lírica e dramática, pelo cruzamento de seus sinais individuais e coletivos; outra, fabricando, em imagens negras e cinzas, o perfil do que foi, do que é, do que desmorana…
No romance, para além da ruína e dos estragos das guerras napoleônicas, os estragos e a ruina morais que germinam no fundo da alma humana. Nas fotografias, por sua vez, a ruína e os estragos dos monumentos históricos e arquitetônicos, não somente em sua dimensão concreta e factual, porém, e sobretudo, na possibilidade simbólica, poética e artística a pulsar no recorte mudo de cada peça, urdida pelas manchas de sombra tocadas, no entanto, aqui e ali, pelo vigor e pela vitalidade da luz.
Se Tolstói conta uma história, Guy Joseph também conta a sua. Decerto, como o russo genial, na tessitura de sua trama, também se valeu do refinamento da observação, do apuro da sensibilidade, do domínio da técnica expressiva, dos júbilos da imaginação e dos halos luminosos da memória, para flagrar, na fração de segundos do click mágico, fatias de uma realidade mutilada e destruída, mas que perdura e permanece.
O casarão abandonado aparece na eloquência silenciosa de seu passado morto; o close da janela ostentando suas entranhas carcomidas; as feridas e amputações de uma anônima murada e árvores centenárias adentrando as reentrâncias de paredes seculares constituem alguns exemplos vívidos dessa coleção de sobras e desse testemunho imagético de uma vida inteira que podia te sido e que não foi, como diria o poeta Manuel Bandeira, no poema “Antologia”.
Descortinando aspectos imperceptíveis de edificações históricas, e das edificações, seus interiores enigmáticos, Guy Joseph traz à tona as feridas impostas pela devastação do tempo, embora nessa devastação consiga apreender, com o olhar incomum de quem vê o invisível no visível, os predicados do esplendor e a força incontida que reside no mistério das coisas.
Seu olhar se desloca, aqui e ali, no movimento e na fixação da câmera, fazendo ecoar a voz dos espaços, suas partes fraturadas, seus melancólicos resíduos, suas camadas secretas, ao mesmo tempo em que dá lume a fala de Cronos, destilando, pelos gumes da ampulheta, seus líquidos fatais. Tempo e espaço, portanto, aqui convergem numa leitura unitária de que resulta, gravado nos utensílios da sintaxe icônica, o que Cortázar assinalou, no conto “As babas do diabo”, como o “fervor por tanta coisa incompreendida mas iluminada por um amor total, pela disponibilidade parecida com o vento e com as ruas”.
Creio ser essa disponibilidade, e principalmente esse amor total, a motivação primeira que impulsiona o olhar de Guy Joseph, a sair por aí, como um escafandrista das ruínas, a “combater o nada”, ainda para me valer das palavras do escritor argentino. Incorporando, assim, a seu fazer artístico a consciência crítica que denuncia a violência contra as plantas da urbe original, o descaso do homem perante aquilo que ele mesmo criou, o fotógrafo se revela ao lado daqueles que se posicionam, nessa guerra intangível e surda, contra a “morte da memória nacional”, sem abdicar, contudo, na singularidade de sua poética, do inadiável compromisso com a beleza.
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OPINIÃO - 22/11/2024