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Magistrado, colaborador do Diário de Pernambuco, leitor semiótico, vivendo num mundo de discos, livros e livre pensar. E-mail: [email protected]

Cavalgada feliz

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publicado em 29/04/2021 ás 06h31

Os nossos passos nos levam por lugares nunca dantes palmilhados, bem mais longínquos que os mares de Camões (foto). E os pés sobre os quais nos equilibramos pisam confortavelmente os sapatos que escolhemos. E nessa trajetória formatamos uma intimidade, um companheirismo, ficamos cúmplices com esse par que reveste as nossas pisadas. Novos, rotos, meia-sola, pouco importa, é com eles que caminhamos.
Na minha juventude vi muita gente fazer furos nos sapatos para folgar os dedos à medida que os pés cresciam e se rebelavam contra o aperto que passavam a suportar. Se essa criatividade artesanal não se impusesse resultava numa marcha claudicante.
Desde sua invenção até os dias atuais que os sapatos fascinam. Não é à toa que as mulheres amam os sapatos. Não apenas um par, mas muitos pares, muitos parecidíssimos no nosso enxergar masculino, mas que são diferentes ao experto olhar feminino.
Por muitos anos tive um par de sapatos com quem dividi aventuras juvenis; as primeiras danças no Tênis Clube com passos entupigaitados; a ida ao primeiro dia de emprego numa escrivania cartorária; as corridas da praça da pedra para casa ao avistar o meirinho e fiscal de menores que não permitia a presença de nenhum “de menor” na rua depois das dez horas da noite; o adentrar no salão do primeiro lupanar que conheci na Maciel Pinheiro ao som do rei Rossi, o Reginaldo de Pernambuco.
Ao contrário da personagem de Natalia Ginzburg que pertencia a uma família em que todos tinham “sapatos sólidos e saudáveis” a minha tinha poucos pares para ornar a sapateira. O meu par quando descalço dos meus pés, repousava inerte embaixo da cama e por vezes servia de abrigo para bichos peçonhentos como escorpião, lacraia e taturana que certamente foram felizes na escuridão e clima peculiar daquele valhacouto itinerante, até serem descobertos e prontamente esmagados pela sola impiedosa.
Foi com esse par de sapatos e trajando paletó de fustão, que entrei na Basílica de Nossa Senhora das Neves para esperar a mulher com quem casei em primeiras núpcias e, diante do altar em genuflexão, expus o seu solado para os convidados que nele puderam ver espelhada toda a trajetória de minha vida, até então.
Era um par de sapatos pretos com fivelas douradas de um modelo que foi muito usado nos anos setenta e início da década de oitenta, e se destacava pelo espesso solado e salto alto e que foi apropriadamente batizado de cavalo de aço. Sobre ele cavalguei feliz.

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