João Pessoa, 26 de maio de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A estrada é longa e o asfalto é largo. 120 kilômetros por hora. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. As sanfonas de Domiguinhos e de Sivuca (foto) fazem um contraponto à recorrente sensação de que viver é um ato absolutamente sem sentido, uma experiência selvagem e absurda, uma “agitação feroz e sem finalidade”, como diz o poeta Manuel Bandeira, num de seus melhores poemas circunstanciais.
Vêm-me à lembrança algumas leituras :“Os olhos dourados do ódio”, “Em busca do tempo perdido”, “Cem anos de solidão”, “A guerra do fim do mundo”, “O apanhador no campo de centeio” e “O deserto dos tártaros”, ao mesmo tempo em que um vento agreste e destemido recorta a paisagem que atravesso, numa velocidade suave e segura, numa viagem a esmo e sem qualquer objetivo, a não ser me entregar à volúpia dos espaços e à anatomia do tempo, preparado para topar a verdade e a beleza dos fenômenos desconhecidos.
Quem habita aquela casa solitária à beira do riacho? Os bois, no pasto, que metafísica tecem em seu silêncio enigmático? Que crenças se desencontram no adro abandonado daquela igrejinha no alto da serra? Os canários estão nas gaiolas perfazendo seus translúcidos cantos que me acalmam o desassossego da alma, a febre e a fábula desse indomável coração. Belo é mesmo o descampado da caatinga com suas plantas ralas, suas algarobas e juremas perfurando as raízes da gleba esturricada pelos finos metais de um sol despótico, que brilha e queima alucinadamente.
Não sei se vou por aí, varando a mais arcaica das geografias no meu mapa de espantos; não sei se sonho o volume do que sinto na vertigem dessa velocidade que me afaga o espírito em cada curva da estrada; não sei se tenho palavras para descrever a riqueza do que vejo, do que memorizo, do que imagino, do que elaboro e do que perco na tela do esquecimento que viaja comigo. Vem-me agora aquele verso único, extraído da cadência de Deus, quando as coisas emudecem e o munda fala; aquela metáfora quase perfeita que une, no tecido semântico das impossibilidades, o terror e o êxtase, a quietude e a tempestade, a natureza e a linguagem, num acidente só, feito de luz e vazio.
Viver dói… A estrada é longa e o asfalto é largo. A dança dos elementos como que se submete ao ritmo tépido dos instrumentos que ouço. Domiguinhos lamenta na leveza de seus arranjos mágicos; Sivuca é áspero, cortante, relâmpago transformado em harmonias inesperadas.
Eu, como um personagem anônimo, sem história nem topografia, sigo por aí, sem saída, domado pelo encanto da velocidade, pela tirania adorável de uma paisagem que não se acaba e que se distende, cada vez mais entregue e mais ofertada, na distância de meus olhos e nas latitudes de meu pensamento. O carro, o corpo, a música, o homem, os bichos, as árvores, os astros, o céu, o fogo, a terra, o ar e a água, tudo, de repente, se funde numa operação cósmica que não sei se real ou imaginária. Só sei que sei! Só sei que sinto! A estrada é longa. Terá um fim?
* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB
TURISMO - 19/12/2024