João Pessoa, 02 de junho de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Em “romance negro e outros contos”, um dos personagens de Rubem Fonseca faz a seguinte afirmação: “O escritor {…} quando não consegue mais escrever, comparece a congressos, instiga os outros a lhe prestarem homenagens, a organizarem banquetes glorificantes, busca medalhas, prêmios, coroa de louros, edições comemorativas”.
Poderia ter acrescentado: as academias de letras etc.
Ora, talvez com Ascendino Leite, a regra tenha sido violada. Octogenário, tomou posse na APL – Academia Paraibana de Letras -, embora se revelasse vívido e infatigável no ofício de escrever, pois, nesta mesma época, concluíra mais um volume de seu alentado jornal literário, com o sugestivo título “O princípio das penas”, e andava organizando a reunião completa de sua poesia, também extensa, intitulada de “Poesia ou morte”.
Homenageado, Ascendino o foi, e merecidamente, pelo menos aqui em Filipeia de Nossa Senhora das Neves. Creio, no entanto, que é chegada a hora, não de louvar o escritor, mas de se estudar seriamente a sua obra.
Seu jornal literário, decerto mais que seu romance, mais que sua crítica, mais que sua poesia, parece-me um campo vasto para o cultivo analítico e exegético. Sobre seu conteúdo, sua técnica, sua riqueza documental, seu testemunho subjetivo, seu estilo podem ser escritos ensaios, monografias, dissertações e teses que viessem dar conta de suas ressonâncias temáticas, do seu alcance estético, histórico, filosófico e, em especial, da ética intrínseca que permeia o pensamento e os interesses cognitivos de um autêntico homem de letras. Homem de letras em dupla e profunda dimensão: que escrevia e lia sistematicamente movido, não por conveniências extraliterárias, mas por uma motivação de ordem interna que lhe delineava o talento e lhe assegurava a vocação.
Seu gosto pelo pensamento crítico atraiu José Rafael de Menezes, em ensaio intitulado “O poder reflexivo de Ascendino Leite”. É preciso que se diga, não obstante, que a escrita do polígrafo de Monteiro, no esgarçamento que lhe é característico, pouco contribui para uma visão coesa e coerente das virtualidades reflexivas do autor de “A velha chama”. A erudição digressiva de José Rafael de Menezes, em seus itinerários alusivos e intertextuais, parece apenas tangenciar o objeto, acariciá-lo com achegas literárias e filosóficas, sem penetrar-lhe a fundo o tecido meditativo, como seria de se esperar de trabalhos dessa natureza.
Joacil de Brito Pereira também lhe granjeou um ensaio biográfico – “Ascendino Leite: escritor existencial”. Em que pese a riqueza factual do texto, assim como a naturalidade de um estilo simples, direto, coloquial, não fica devidamente esclarecida a noção de existencialidade como traço nuclear no perfil do escritor. O excesso de citações, às vezes desconectadas do teor que mobiliza o texto principal, tende a prejudicar o sentido de unidade inerente a ensaios desse tipo.
Ambos, José Rafael de Menezes e Joacil de Brito Pereira, associados a mim mesmo, que escrevi, como remate de minhas leituras acerca do autor de “A prisão”, o livro “Ascendino Leite: as luzes sobre as coisas”, constituem, cada um à sua maneira, pontos de partida para uma fortuna crítica que efetivamente carece de ser compilada e sistematizada, no sentido de abrir linhas de pesquisa para as novas gerações estudiosas.
Insisto neste aspecto: os livros de Ascendino Leite, em seus diversos gêneros, estão aí como “corpus” praticamente virgem e apto aos melhores estudos literários. Estudos críticos que, a seu turno, fundados numa teoria apropriada e orientados por métodos adequados aos apelos de sua prosa e poesia singulares, possibilitassem o encontro crítico necessário entre autor e leitor, entre obra e leitura.
Seu jornal literário parece transgredir os cânones de qualquer gênero, mesclando-os, na tessitura da palavra criadora. Tangenciando a história, margeando a crítica literária, valendo-se da memória, assumindo-se “jornal’, aproximando-se do diário e da autobiografia, realiza-se, sobretudo, como obra de arte. E como obra de arte, testemunha a vida, reaparelhando os poderes demiúrgicos da linguagem.
Mesmo motivado, a princípio, pela exigência de veracidade do registro, pela intenção documental e analítica, ou pelo desejo superior da reflexão filosófica, existe, em Ascendino Leite, um compromisso explícito com a função estética da palavra. Um voltar-se persistentemente para a possibilidade artística de sua expressão.
Daí, a ambivalência dos seus diários: obra de valor histórico, de implicações éticas e de fôlego ensaístico. Mas, principalmente, obra de estilo. Obra de arte!
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OPINIÃO - 22/11/2024