João Pessoa, 11 de junho de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Todos nós vivemos o amor em nossas vidas, mas têm pessoas que transparecem um amor que transcende os limites da normalidade e chega a ultrapassar os sentimentos, indo além do ordinário atingindo uma superioridade que parece inacessível. Vou procurar contar esta história de amor que começa numa festa do Colégio das Lourdinas, chamada de quermesse, promovida em favor da capela que estava em construção, realizada na Escola São José, no dia 11 de novembro de !961, escola mantida pelas freiras para crianças humildes. Como minha colega Lúcia Y Plá morava próxima, foi requisitada para armar as barracas, juntamente com o professor Diógenes Sobreira, nosso professor de inglês. Passaram o dia todo nessa incumbência o que foi até às 17 horas. Cada colega era encarregada de uma tarefa. Lúcia, já cansada, disse para as colegas que chegavam para o início da festa: “vocês se virem aí que eu vou para casa e não volto mais”. Sentia-se exausta. Em casa, tomou banho, lavou o cabelo e colocou uma roupa confortável. Após o Jantar, ficou na varanda apreciando o movimento da rua. Quando chegou Valmira com a sobrinha, para que fosse a toalete. Conversando, Valmira insistiu para que Lúcia voltasse para a festa, a barraca precisava da presença dela. Lá estavam Aurimar, Rosimar e Elinalda e carecia uma pessoa que atendesse aos pedidos e as outras servindo. Diante da insistência, Lúcia levantou, trocou de roupa, fez um totó no cabelo e reintegrou-se ao grupo.
Já na barraca, ficou providenciando os pedidos. Foi quando viu dois rapazes que a chamaram atenção. Estavam sentados em uma mesa, um de camisa branca e outro de camisa azul marinho. Pediram cerveja. Lúcia quis fazer uma brincadeira, e redigiu um bilhete para mexer com eles, feito no cardápio que era o emblema do Colégio. Ela fala que ainda o guarda com maior amor. No bilhete, “eu perguntava como era o nome dele; Se ele era daqui? Onde morava? Eu gostava de fazer amizade etc. Disse para Aurimar: entregue ao de camisa preta, disse preta porque estava escuro, mas era azul marinho. Quando você voltar jogue na bandeja que eu apanho. Quando Aurimar voltou ele escreveu chamo-me Waldírio Gadelha etc. Aurimar tinha entregue ao de camisa branca porque o achava mais bonito, o de camisa preta era feio. Eu relutei com Aurimar. Eu queria que fosse entregue ao outro. Fiz outro e mandei entregar ao de camisa preta, dizendo que o bilhete tinha sido entregue a pessoa errada, porque de onde estava, só via o de camisa preta. Quem era ele? O meu Betinho. Coisas do destino. Ele respondeu: sou paraibano, mas vivo ausente, estudo fora. Assim disse na resposta; “identifique-se porque pode ser motivo para uma volta breve”. Na nossa época nós moças éramos muito recatadas. Nessa altura a festa já estava chegando ao fim. Lúcia resolveu ir embora pois não desejava identificar-se. Rosimar falou: “fique com o de camisa branca que eu fico com o de camisa preta”. Eu disse não, eu quero é o de camisa preta. Foi quando veio uma pessoa que não lembro agora e perguntou: “vai agora para casa?” Eu disse: vou. Eu acompanho a senhora. Ao chegar em casa, no portão, senti aquela mão no meu ombro. Era o rapaz de camisa azul marinho e falou: “era você que estava mandando aquele bilhete?” Porque Aurimar foi a ele e denunciou apontando para mim. Tomei aquele susto. E logo tentei explicá-lo que se tratava de uma brincadeira e não tinha feito com outra intenção. Ele disse: “não tem nada e convidou-me para tomar um guaraná lá na mesa. Eu voltei trocando os pés. Elda, Zelma, Marina e Aurimar e Rosimar, do outro lado, dando gargalhadas. Minha cara sem um pó no rosto, meu cabelo de totó, parecia defunto morrendo de vergonha. Toda descabelada”. Mantiveram uma conversa. Ele revelou seu nome, Humberto, e disse que mentiu no bilhete. Falou que trabalhava aqui na Paraíba, era gerente da Esso em Cabedelo. Nervosa, Lúcia derramou o guaraná na mesa. Ela também se descobriu, contou sobre sua vida. Desculpou-se pela brincadeira e despediu-se. Foi quando ele indagou: “você tem namorado? Ela disse: não. Eu posso ir na sua casa amanhã?” Respondeu: pode. E falou-me. A partir daí foram 43 anos maravilhosos em minha vida.” Aí foi o início de um grande amor. O encontro com sua alma gêmea que consegue perceber o que o outro pensa, basta uma troca de olhares. Você parece que não se vê mais sem ela ao seu lado. Há similaridade e afinidade. É sua referência. Se aceitam e se perdoam e há uma cumplicidade. Se separam, mas suas mentes estão ligadas. É uma pessoa para sempre. A criação de sentimento que cresceu com o tempo, fez a história que será lembrada e eternizada por aqueles que conheceram o casal e privaram de sua amizade. Ela acrescenta: “Humberto era um homem temente a Deus e religioso praticante. Foi e é o grande amor da minha vida e tenho certeza que um dia na eternidade nós nos encontraremos. Tenho até hoje a camisa dele, azul marinho, e meu vestido com que me encontrei com ele. É uma mala de recordações”.
Lúcia começou a namorar Humberto aos 19 anos. Já tinha tido outras paqueras, mas nada sério, namoricos de carnaval, porém tudo acontecia naquela época com muito respeito e pureza, eram outros tempos. A partir daquele primeiro encontro se passaram cinco anos. Com um ano ele deu aliança de compromisso e no outro noivaram. Nesse tempo ficaram preparando-se para o matrimônio. Lúcia trabalhava no Colégio Stella Maris ora substituindo a diretora, ora como secretária, porém prometeu ao noivo que, quando casasse, deixaria o trabalho para se dedicar inteiramente ao lar. E assim foi feito. Diz que foi uma opção dela, queria casar com tudo organizado e com esforço unicamente dele. Compraram os móveis etc. Tudo feito com dedicação. Em conversas a dois, não só planejavam a casa que estavam construindo, mas também, o relacionamento entre eles e como administrariam seus sentimentos. O que faziam de maneira prospectiva, dizendo que iriam buscar a harmonia e o equilíbrio de modo que a coabitação permitisse serem resilientes e superar obstáculos do mundo emocional, para que fossem plenamente controlados com a presença da energia vital do amor que regeria a convivência do casal. Diz Lúcia que Humberto falava: “Lucinha nós nos amamos muito e vamos ficar unidos até que a morte nos separe. Vamos fazer tudo um pelo outro para que não fiquemos com raiva. Não vamos nos ofender ou ferir, se acontecer… logo pedir desculpas e sermos humildes. Isto foi uma doutrina que adotamos em nossa vida inteira.” Diz ainda: “Deus pegou Humberto e colocou nos meus braços. Aí fizemos o pacto com Deus, Ele seria a base do triangulo e de um lado estava eu e do outro ele. E assim vivemos professando a nossa fé. Adotamos os mesmos sacramentos, frequentando a missa e cultos religiosos com toda família”.
Lúcia casou-se no dia 8 de dezembro de 1966. Quis passar a lua de mel na sua casa por entender que ali estava o seu maior aconchego e representava a glória do seu amor vitorioso. Diz: “Cada canto da casa lembrava pedacinhos de momentos nossos, de felicidade infinda. Recanto construído só para eles.” Compreendia que devia usufruir daquele lugar especial, pois seria o selo da concretização do amor deles, e merecia ser vivido exclusivamente. Seria o ninho de seu amor. Essa ocasião considerava a mais importante de sua vida. Ela se diz saudosista e muito apegada às coisas, que. embora materiais, significavam ou lembram sentimentos, um gesto, um momento, um ato de afeição. Depois de uma semana foram passar uns dias no hotel. Fala Lúcia:” a lua de mel foi maravilhosa, mas dentro da minha casa. Para mim teve valor incomensurável”. Aqui em João Pessoa moraram, e, com dois anos, nasceu a primeira filha, Marilia. Expos: “Foi o dia mais feliz da minha vida, quando sai com minha filha da maternidade e para Humberto também. Notei que ele queria muito um homem, por que na família ele foi o único, mas também ficou feliz com nossa Mariliazinha! Os outros dois. Umberto e Marcelo, já nasceram em Salvador. Os filhos são frutos do amor de seus pais. Representam a expansão do amor que através deles se perpetua. Aqui se aplicam as palavras do Papa Paulo II (foto) em Familiaris Consortio: “Os cônjuges enquanto se doam entre si, doam para além deles mesmos a realidade do filho, reflexo vivo de seu amor, sinal permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do ser pai e mãe.” Os filhos representam bençãos de Deus.
Lúcia, fazendo uma reflexão sobre sua formação, expressa que nasceu para ser doméstica, nunca pensou em outra coisa a não ser dona de casa e mãe. Era o seu maior sonho e felicidade realizada, quando tivesse em seus braços um filho. Sempre se viu “doméstica e romântica a moda antiga, como diz Roberto Carlos” e, nessa condição, cumpriu sua missão e foi muito feliz. Fala: “Eu tenho minha formação por essência cristã, desde os 7 anos passei cinco anos na cruzada, cinco anos de Juventude Estudantil Católica (JEC), então eu aceito as palavras de Deus e a Bíblia como verdadeiras e inquestionáveis. Além do Cursilho, que é um movimento eclesial de evangelização cristã, sedimentou uma base nos seus conhecimentos. Tenho a certeza que eu estou certa e ninguém me demove das minhas convicções”. Fez curso de Teologia para aprofundar-se nos saberes religiosos. Hoje, convive com pessoas que tem outras religiões, respeita-as, todavia, é convicta de suas raízes e não aceita deturpação. O que existe é fidelidade. Humberto era graduado em Administração de Empresas e diz Lúcia: “que o sonho dele era trabalhar para ele mesmo, ser empresário. Passou 10 anos na ESSO, como gerente ganhava o máximo e não podiam mais aumentar o seu salário, foi quando o despediram. Logo em seguida surgiu uma oportunidade de negócio em Salvador e ele começou a se engajar em outras coisas e venceu na vida, como desejava.
Chegaram em Salvador no dia 13 de março de 1970, três meses depois Lucia engravidou de seu segundo filho Humberto… Em Salvador, não tendo parentes, acostou-se às Irmãs Sacramentinas que foram suas amigas e lhe apoiaram em tudo na vida, compensando assim a falta dos familiares. O casal em Salvador viveu muito bem e os negócios prosperaram. Além de outros criaram uma indústria de piso industrial. Lúcia tinha um sonho de ter uma casa onde plantasse, aguasse o jardim etc. Gosta de terra, de plantas, de criar bicho etc. Contou: “um dia Humberto fez-me surpresa, comprou um terreno de mil metros quadrados na Ilha de Itaparica, quase que eu tinha um troço, porque era tudo que queria. Isto foi no dia 8 de dezembro, influenciado por uma amiga que também tinha comprado. Eu nasci para ser fazendeira e Humberto me consolou dando-me essa casa na Ilha. Era a minha vida e meu mundo, depois passou a ser o dele também. Ele apaixonou-se. Passei a dedicar-me inteiramente à casa. Plantei muitas árvores frutíferas, criei ganso. galinhas garnisés, pavão, cachorro de não sei quantas raças etc. Eu amava estar em contato com meus animais, possuíam nomes e a eles dedicava todo carinho. Era uma felicidade! Meus filhos adoravam e tinham seu círculo de amizades que também os faziam felizes. A casa tornou-se o fulcro dos encontros e congraçamentos da família e todos amigos. Foi uma época inesquecível. Nos proporcionou dias felizes e imemoráveis. A Casa é uma parte de mim. hoje não tenho condições de ficar sozinha lá”.
Na linha do tempo, observa-se que houve dois episódios de doença na vida de Humberto, que abalaram Lúcia. O primeiro, foi quando estavam na Ilha de Itaparica. Humberto sentiu-se com uma moleza, enfraquecido, sem forças. Com aquele estado voltaram para a cidade e imediatamente consultar o médico. Esteve muito doente. Segundo os médicos, depois de pesquisarem diagnosticaram como uma doença auto imune. Ficou bem magro e sem força nem para puxar uma cadeira. A casa converteu-se em um hospital, com cama e todos apetrechos necessários. Ficou em cadeira de rodas, a doença durou 3 meses. Foram dias difíceis, mas recebeu os cuidados e o carinho dos familiares e em especial de sua dedicada esposa. Ele recuperou-se plenamente. Quando chegou no consultório do médico, ele o disse: “está andando? Lúcia falou:” D, o senhor acredita em Deus? Ele saiu da cadeira de rodas, devolvi a cama ao hospital etc. A casa voltou ao normal, após muita paciência e dedicação. Eu tenho muita fé porque fui realmente agraciada por Deus”. Em outubro a filha casou, ele já estava podendo levá-la. Embora se apresentasse muito abatido, entrou com ela na igreja.
O segundo ocorreu anos depois, conforme relato de Lúcia: “Humberto comprou uma área imensa na periferia, com a pretensão de lotear, fazer casas e vender. E disse que ia tirar uns terrenos para os funcionários, não ia doar, mas vender a preços módicos acessíveis a todos. Quando foi um dia ele saiu com Marcelo para olhar o terreno e qual foi o susto, o terreno totalmente invadido. Estava em casa quando chega Marcelo sem Humberto e eu pergunto: cadê seu pai? Ele disse: “papai está no Hospital Espanhol, teve um começo de infarte. Fiquei louca. Às pressas corri fui ao hospital e chegando lá agarrei-me com uma imagem de Nossa Senhora das Graças, belíssima, que tem na sua entrada, e supliquei: Minha mãezinha não permitas que Humberto morra, estou com meus filhos ainda jovens e precisam ainda muito dele. Tinha uma moça junto de mim cujo marido também estava na emergência, disse-me: “está vendo esse rapaz que está saindo daqui? É médico do coração, Dr. Janderson Andrade, que era o médico de Jorge Amado. Eu fui atras dele e pedi, socorra meu marido Dr. Ele imediatamente atendeu-me. Encontrou-se com um casal amigo de Neli Regina, que tinha recebido o telefonema com a notícia e viera para dar assistência. O casal, que tinha amizade com o médico, disse: “Dr Jadelson, esses aqui são mesmo que irmãos”. Ele pediu para providenciar uma ambulância com urgência para deslocá-lo para o Hospital Aliança, porque a medicação que deveria ser aplicada depois de três horas não adianta mais’’. Ele ficou bonzinho, foi tratado com o Dr. Jadelson que dizia: “de infarto Humberto não morre mais”. Ficou completamente sadio.
Lúcia recorda: “Festejei meus aniversários de casamento: as bodas de prata, 25 anos, as de pérola, 30 anos, e as de coral, 35 anos, na Ilha um amigo celebrava uma missa, fazia um almoço para os amigos. As bodas de rubi, essas eu fiz questão de festejar com maior pompa, parece que estava adivinhando, foi nos 40 anos, bodas de rubi. Realizei festa como eu queria, com tudo a que tinha direito. A cor predominante foi o vermelho, os enfeites, as flores, um encanto. Falei para Marilia: vou festejar minhas bodas de rubi, pode ser que eu não faça as bodas de ouro. Marilia disse: “Lá vem mamãe com as previsões dela”. Não, eu falei estamos ficando velhos e Deus e quem sabe. Não fiz 50 anos de casada, mas a festa dos 40 foi maravilhosa. Tivemos uma vida muito simples, mas com a expressão do amor mais profundo, pois sentíamos que fomos feitos um para o outro”. O casal possuía um círculo de amizades que girava em torno dos amigos que foram companheiros no Encontro de Casais com Cristo. Com essas amizades saiam com outros casais para jantar e almoçar fora, intensificando assim a sua vida social. Nunca foram de se exceder. A vida doméstica era a predominante, sempre devotada ao lar, a Umberto e aos filhos. Assim, caminhavam e desenrolava-se o seu mundo. Disse-me “Ele não gostava de carnaval, mas com a minha convivência começou a gostar para me satisfazer. Era a festa em que brincávamos, íamos para Joao Pessoa”. O casal foi convidado para participar do VII Encontro de casais com Cristo e a partir daí nunca mais largou esse movimento. O casal ajudava muito na paróquia, era com Humberto que o padre Luna contava. Passaram a implantar encontros em cidades do interior, como em Feira de Santana, Dias D’Avila e outros. Muito atuantes, quando da vinda do Papa a Salvador foram convidados para a comissão de recepção. Hoje, não atua tanto porque o padre faleceu e seu esposo também, atuando apenas com as Irmãs Sacramentinas. Do engajamento nesse trabalho dos Casais com Cristo surgiram amizades boas que mantém até hoje.
As crianças estavam sempre unidas e suas festinhas de aniversário sempre comemoravam com os coleguinhas do colégio. A formação dos filhos foi muito diversificada. A filha, depois que terminou o colegial, fez concurso para a Caixa Econômica e passou. No primeiro momento ficou no setor de habitação e depois passaram-na para o setor de penhor, e lá permaneceu por 30 anos. Durante esse período fez curso superior custeado pela CEF, tornando-se expert em avalição de joias, relógios e pedras preciosas. Amava a profissão. Após o curso viajou o Brasil inteiro dando cursos sobre a especialidade. No banco era instrutora e avaliadora do setor de penhor. Com o novo governo houve umas remodelações, que, segundo ela, ia ter algumas perdas e não era mais interessante permanecer. Aposentou-se. Agora, resolveu fazer um curso superior em São Paulo para aprimorar os conhecimentos em pedras preciosas, a fim de adquirir maior domínio, em virtude de hoje a sintetização das pedras preciosas ser tão perfeita que confunde. O curso é projetado em módulos. Cursou o primeiro e o segundo, mas está parado por conta da pandemia. A especialidade de avaliador de joias exige alta qualificação, equipamentos específicos para cada joia a ser avaliada etc. É reconhecida e requer conhecimento técnico cientifico-geológico. O segundo filho é Humberto Oliveira Castro Filho. Parece demais com a mãe. Não quis prosseguir os estudos, porque tem nato o poder da invenção e o dom de desvendar a engenhosidade das máquinas. Lúcia diz que deu trabalho no colégio. O que é próprio das genialidades. Não se sente compreendido pelo senso comum. Lúcia numa ocasião foi consolada pelas freiras Sacramentinas, suas amigas, que lhe disseram:” Lucinha, Beto Filho precisa um colégio que tenha um curso direcionado para suas aptidões”. Verdade, as genialidades não se conformam com a mesmice, há que ter algo atrativo e inovador para motivá-las. O ensino tradicional não apresenta esses requisitos. Opera diante da normalidade, o que para ele não era interessante, como se constata no fato em que Lúcia expressa. Temos uma firma de piso industrial, ele domina tudo na firma. Foi para os USA sem dominar uma palavra em inglês, para uma exposição de produtos agrícolas, e lá chegando viu uma máquina de polir piso, alemã, ele olhou… e observou atentamente o maquinário. Quando aqui chegou juntou-se a outro colega, que como ele gostava de mecânica, construía barcos e mexia em motores. Fez a máquina e deu certinho, perfeita. Meu marido gostava muito dele porque toda peça que se precisava ele fazia e dava um jeito. As máquinas da firma eram pesadas, ele trocava peça, consertava e sempre colocava no prumo. Nasceu para isso. Hoje ainda tem essa prática. É a vida dele. Lúcia, seu filho faz lembrar o que escreveu Maurice Druon, da Academia Francesa de Letras, “O “Menino do dedo verde”, um clássico da literatura mundial. Falava sobre uma criança, Tistu, menino que era diferente de todos. Não conseguia aprender na escola tradicional que não a motivava. Os pais tentaram, mas não conseguiram adaptá-lo. Todavia, conseguiu aprender com o velho jardineiro Bigode, porque ensinava coisas úteis. Tudo em que ele tocava transformava-se. Seu filho é um menino do dedo verde. Nem sempre os caminhos normais são aqueles que os geniais veem. O terceiro filho, Marcelo, é engenheiro, se formou em engenharia justamente por causa da nossa firma, e se mantem à frente dos negócios.
Continuou, Lúcia, a sua história: “Humberto pai, era diabético, mas era controlado e gozava de boa saúde. Não teve nenhuma doença para morrer. Morreu perfeito como eu estou aqui. Vai fazer 11 anos, faleceu em 2010, era uma sexta feira, viemos da Ilha para casa. Quando foi no sábado ele amanheceu dizendo que ia se matricular em uma aula de computador para poder fazer projetos e não sobrecarregar Marcelo. “Vou me matricular e vou para a firma e eu disse: é e eu vou fazer meu cabelo e minhas unhas em Célia. Você deixa-me lá! Quando terminei liguei para ele vir me pegar, já era quase 13;30 e fomos almoçar num restaurante maravilhoso aqui na Graça. Terminamos o almoço, estávamos cansados e caímos na cama e dormimos, eu e ele. Quando foi às 16 horas acordou me chamando para irmos à missa. Nós fomos e, ao término, falou com todas irmãs e voltamos para casa para tomar um café leve. Foi ler os jornais, seu robe preferido. Disse-me: “aqui tem uma notícia sobre a ponte de Itaparica. Você quer ver?” Disse: agora não. Depois eu vejo. E continuei a fazer palavras cruzadas. Ele passou e disse: “vou dormir, porque a TV dia de sábado não tem o que a gente ver”. Despediu-se como de costume, jogando um beijo com o dedo como fazia para mim e eu para ele. Quando fui para cama senti que Humberto roncou e não era seu costume aí eu falei; e ele não respondeu. Sacudi pedindo não me deixe, mas Deus já o tinha levado. Foi uma morte súbita que o médico falou em que ele não havia sentido nada. Deus o levou nos braços, então arranquei o crucifixo da parede e orei pedindo misericórdia. Fiquei fora de mim. Agradeci a Deus a maneira carinhosa como o levou. Durante o velório fiquei ali, até na hora final. Houve missa de corpo presente, um amigo dele disse algumas palavras muito emocionantes, numa cerimônia com muitos amigos. Na hora de fechar o caixão retirei-me amparada por uma amiga, irmã Regina Celi. As freiras Sacramentinas deram-me apoio tentando consolar-me, usando palavras reconfortantes. Acrescenta: “Entendo que Humberto vive em mim, tínhamos um amor profundo e reciproco Ainda hoje sou louca por ele, amo-o com todas minhas entranhas, e sei que ele também me amava na mesma intensidade. Um amor que não esqueço um segundo, amor com respeito, fé e sem interesses, visando o bem um do outro. Hoje, sou partida pelo meio. O amor não passa. Não tiro minha aliança por nada. Tenho minha cruz que digo que não carrego, mas sim abraço. Meus filhos corresponderam a minha maternidade. Tenho uma filha maravilhosa que me dá toda assistência necessária. Sou feliz, não fico lamentando. Vivia em função dele. Hoje existe o vazio. Na segunda feira a moça do curso telefona, Marilia atende e ela diz: “o rapaz matriculou-se e não compareceu?” Então ela deu a notícia que ele havia falecido.
Constata-se que Lúcia é uma pessoa feliz, realizada, com uma bela família, bem estruturada, mas há duas vertentes marcantes que traçaram sua linha do tempo: a presença de Deus em todas ações que seguiram seus caminhos, tendo a convicção e a fidelidade que Ele está e estava presente em seus momentos, norteando as direções que devia e deve tomar. Isto se comprova ao seu entorno, seus filhos, sua casa, seus animais etc. Lúcia, diante desse contexto, debruçava-se intensamente de corpo e alma, não media esforços para alcançar o que desejava. É sentido em sua fala contagiante e verdadeira. A outra é o amor a Humberto, pois observei que ela busca consolo na lembrança do que juntos viveram por 43 anos de amor intenso. Hoje transparece que estas lembranças dão sentido a sua vida. Ela via nele a sua própria imagem. Havia momentos, no seu depoimento que não sabia a quem se referia, a ela ou a ele, pareciam se fundirem num mesmo sentimento, num mesmo corpo. Com sua eterna ausência ela partiu-se ao meio. Referindo-se a Humberto resumiu: “quando ele nos deixou, um pedaço de mim foi com ele. E tenho certeza que a morte irá nos unir novamente e eu voltarei a ser completa. “Isto é, na verdade, um amor intenso. “O amor não conhece sua própria intensidade até a hora da separação”, Khalil Gilbran.
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TURISMO - 19/12/2024