João Pessoa, 23 de junho de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
“Boa Sorte” é sua razão social. Já no nominativo casam-se certo halo místico e o tom publicitário dos apelos mercadológicos, certos sinais de fatalismo esotérico e a solaridade implacável da verdade comercial. Mas, melhor que a rubrica principal ostentada, em letras coloridas, em sua fachada, é o cognome, de uso doméstico, que o seu proprietário escolheu: “O desequilíbrio do Ser”, reportando-nos à sua atávica veia poética, fertilizada nas águas do Taperoá, nutrida na gleba parda do clã dos Farias, e, ao mesmo tempo, sinalizando para a singularidade de seus frequentadores habituais.
Falo, caro leitor, da Banca de Revista de meu bairro, os Bancários. Banca de Revista, Bomboniére, meio lanchonete, meio bar, principalmente, meio bar. Antes de seu progresso financeiro e de seu crescimento na área de serviços e produtos, era uma simpática barraca onde bebíamos cerveja, uísque, conhaque e outros líquidos essenciais, já tocados pelo calor gratuito da comunhão humana. Num de seus aniversários, meio arrebatado pelo malte translúcido de um Black White e num arroubo retórico de uma oratória meio patética, meio desesperada, chamei-a carinhosamente de “pocilga iluminada”.
Pois bem, essa pocilga, ou melhor, essa barraca, essa banca de revista, quase uma loja de conveniência, como que emula, sem nenhum propósito pecuniário, com a respeitável instituição clínica, “O Equilíbrio do Ser”, localizada mais adiante, praticamente na mesma avenida. Emula, e, no meu entender, está mais próxima da verdade, muito embora a “Boa Sorte” não tenha, em seus objetivos, que tangenciar qualquer certeza existencial, psíquica, orgânica, clínica ou transcendental. Se há fatores cognitivos pulsando em suas artérias, é porque viver é conhecer, conhecer sobretudo nossas imperfeições e lacunas, nossos vazios incomensuráveis e nossas esperanças decepadas .
A alcunha com que Farias a caracterizou – é hora de enunciar – se deve à idiossincrasia, melhor dizendo, à loucura particular que modula os hábitos dos mais assíduos frequentadores. O próprio Farias se reconhece como espécie típica desses loucos mansos que se sentam à mesa de bar, quase diariamente, para jogar conversa fora, falar da vida alheia, perder e vadiar no tempo, ao sabor de uma, duas, três, dez doses, não importa. O que importa, no fundo, é não ter vergonha de si mesmo, de suas fragilidades corriqueiras e da dor anônima que banha todos os dias suas respectivas almas.
Um perdeu a saúde, outro perdeu a família, aquele não consegue saldar suas dívidas, aquele outro não dá jeito em seu alcoolismo. Fulano cultiva o dissabor de ser um artista frustrado; beltrano é tipicamente bipolar e sicrano não esconde seus transtornos obsessivos compulsivos. Enfim, tem louco de todo gênero, porém, todos, plenamente humanos em seus desequilíbrios.
A verdade é que somos seres esquisitos, informes, imprevisíveis, desamparados, desconhecidos uns dos outros, por mais que possamos permutar o pequenino pasmo de nossa precária condição humana. Diferente da persona do “Poema em linha reta”, de Álvaro de Campos (foto), estes meus amigos só têm levado porrada e nenhum deles se diz campeão em qualquer coisa. No entanto, são gente de carne e osso, anti-heróis das inadiáveis rotinas, que me dizem e me ensinam tantas coisas. Por isto, cá comigo, suspeito que não existe o equilíbrio do ser.
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TURISMO - 19/12/2024