João Pessoa, 29 de junho de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Quando éramos filhos do sol, eu via o rosto da minha mãe nas panelas de alumínios, como se fosse um adorno. Acho que ela tinha poucas panelas, mas arreava até virar um espelho.
Eu achava que minha mãe tinha saído do livro “Cem Anos de Solidão” de Gabriel Garcia Márquez. Ela sabia quando eram três horas da tarde pela fresta do sol na cozinha.
Eu ando arreando as panelas daqui de casa. Ser casado com uma chef de cozinha não é fácil. Nunca vi tantas panelas e para que essas panelas todas.
Convém acrescentar que esse trabalho corresponde a uma das minhas participações nesse período turbulento da história de nossas vidas. Sim, eu não sou aquele amante à moda antiga.
Já não tínhamos uma empregada doméstica bem antes da pandemia. É muito caro manter um funcionário em sua casa, principalmente para quem realmente paga todos os impostos e direitos do trabalhador. A diarista Iara assumiu esse trampo, mas apenas dois dias por semana
O espelho da panela reflete a nossa estranheza resultante do fato de a poesia ser contrastante e, ao mesmo tempo, fiel à realidade, mas eu sei onde estou, na poesia de Augusto de Campos “Onde quer que você esteja/Em Marte ou Eldorado/Abra a janela e veja/O pulsar quase mudo”
Sou um jornalista que aprendeu a arear bem as panelas. Aliás, passadores de pano não passarão.
Essa tese eterna das panelas faz todo o sentido do prazer da comida, na generalização do trabalho doméstico das palavras, a aprender com Paulo Freire e a entender. Não é possível que uma mulher faça sozinha todas as atividades de uma casa. É covardia.
Me parece que a história de arear as panelas nos permite, com o seu brilho, fugir da agonia. Só parece.
Tal não deve, mesmo assim, ser uma terapia, mas poderia até surfar na antologia das panelas. Sei de poucos homens que ajudam a mulher nesses afazeres: eu mesmo faço porque não há outro jeito de ver meu rosto na cozinha, onde não tem espelho. Só no closet e na cama. É tão engraçado esse papo de “espelho da cama”, quando na verdade o espelho está na mulher.
Nunca vi meu pai lavando uma panela e olha que ele era bem mais moderno que eu, mas ele tinha muitos ofícios.
Desde cedo, minha mãe dividia as tarefas com os filhos criados e, nesse tempo, o mesmo ensinar, no mesmo sentido, o aprendizado que não víamos nas outras casas.
Minha mãe estava certa ao nos ensinar a viver. Éramos filhos do sol e tínhamos as janelas abertas.
Kapetadas
1- Era para ter feito outro texto hoje. Não fiz tudo que planejei. Me perdoo.
2- Madrugada. Esse escuro trajeto dos desejos. Sem panelas para arrear, é claro.
3 – Som na caixa: “Com minha cabeça já numa baixela”, Chico B
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TURISMO - 19/12/2024