João Pessoa, 11 de julho de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Para lidar com a criança teremos que olhar o mundo com olhos de criança a fim de podermos entendê-la, perceber suas descobertas, perspectivas e sentimentos. Isto constitui tarefa desafiadora para o adulto. Constato isso observando meus dois netos, um de 2 e outra de 6 anos. Fase difícil, mas muito bonita. Precisam de acompanhamento 24 horas, vendo-se estes seres descortinarem o mundo. Quando a criança nasce, já faz um tempo que o adulto o habita. E ela toma como referência o universo dos adultos que estão ao seu entorno. A maior ferramenta do processo educativo é a imitação.
No seu desenvolvimento aguça seu imaginário e é através dele, dos 6 e 7 anos, que se vê progredir a integridade, a compreensão sobre o contexto ambiental-social-cultural e permite transportar-se para situações que na vida real não era possível. Os contos de fadas? Quantos nos educaram? Nos deram a noção do certo e errado, do pode e não pode, do bom e do mau. A criança tanto mais criativa quanto é maior o nível de abstração e flexibilidade cognitiva e se torna mais apta a ingressar no estágio posterior até chegar ao mundo do adulto. Ocorre, nessa fase, a personificação, surgem amigos imaginários, se identifica com Batman etc.
Estabelecem-se a socialização e a aprendizagem, consolidam-se as habilidades sociocognitivas. Vários estudiosos dessa área do conhecimento, como atesta, Wallon (1979), nos mostram, como imaginário infantil, a brincadeira de imitação, o faz de conta, os jogos de funções simbólicas, são importantes para o crescimento. Piaget (1980), com o advento da linguagem, demonstra como a criança começa a comunicar-se e a descortinar o seu universo. Vygotsky (1998), fala como a criança passa a criar uma situação ilusória e imaginária, como forma de satisfazer o que não pode no concreto realizar etc.
Maria Alice, criança de seis anos, acalentava o sonho de andar de ônibus. Com aquela ideia fixa, brincava com as bonecas e no seu imaginário fazia várias viagens. Ela solicitava todos os dias a sua mãe, que queria andar de ônibus e que sua mãe a levasse. Diante da insistência a mãe disse-lhe que um dia ia satisfazê-la. Era filha de um casal de classe média, tinham carro, de modo que ela nunca precisou andar de coletivo, sempre seus pais iam deixá-la e buscá-la na escola. Então é chegado o dia em que Rosaly disse para a filha: “hoje vamos andar de ônibus”.
Aprontou Alice, colocou a mochila em seus ombros, lhe deu algumas moedas, e foram para a parada do ônibus. Pegaram o circular do Bessa e lá se foram. Logo na entrada o motorista mandou que ela passasse debaixo da roleta. O que ela achou ótimo. Ao sentar ela pediu o cinto para usar. Não havia cinto. Numa distração da genitora o ônibus deu uma freada e ela bateu com a cabeça no suporte da cadeira da frente. Mais duas paradas adiante entraram duas crianças, uma adolescente e outra bem pequena, e começaram a pedir ajuda dizendo que estavam com fome e que cada um desse alguma coisa? Alice ficou condoída e logo disse: “Mamãe eu quero uma moeda para dar para eles”. Assim foi, ela deu as moedas e sobraram algumas. Mais adiante, duas paradas do ônibus, entrou uma senhora idosa dizendo que precisava fazer um tratamento e que alguém contribuísse qualquer coisa servia. Alice falou: “mãe aquelas moedas que não usei eu quero dar à senhora”. Foi dado.
O ônibus prosseguiu a viagem, pois o propósito de sua mãe era fazer todo o percurso, foi quando entrou um rapaz só com um braço pedindo que as pessoas auxiliassem para ele comprar o material escolar. Foi quando Alice gritou: Eita píula! Um ditado que ela sempre diz, quando fica admirada. Nisso um rapaz que estava no ônibus expressa: Hei moço! Quantas vezes você pede para mesma coisa e ainda não comprou? Aí se forma uma discussão no ónibus uns a favor e outros contra. Na outra parada o rapaz pedinte desce e as pessoas se acalmaram. Alice ficou admirada. Falou para mãe: da outra vez temos que trazer mais dinheiro. Na próxima parada, era o final da linha, elas teriam que sair. Rosaly perguntou para filha: “você quer ainda andar de ônibus?” Ela respondeu: “E você deixa mamãe? Eu quero, mas pediria que você me desse mais dinheiro “.
Veja, esse relato aconteceu com uma amiga. Ela idealizou realizar o sonho da sua filha e disse-me que ela ficou chocada com a realidade que encontrou no passeio de ônibus. “Eu mesma não tinha noção, fez-me refletir muito sobre como nós somos privilegiados e não sabemos dar o valor que as coisas merecem”. Alice, na sua ingenuidade de criança, achou o passeio fantástico e disse-me: “Melhor que eu andar de carro.” Eu falei: mesmo tendo batido e machucado sua cabecinha? Ela expressou: “Foi tudo muito divertido.” Alice ficou deslumbrada e receptiva a todas aquelas novidades ocorridas na experiência de andar de ônibus. Chegou na Escola contando a novidade e incentivando as colegas a fazerem o mesmo. Constata-se que o sonho de Alice repercutiu mais sobre sua mãe, pois ela estava longe de enxergar a problemática da estratificação social; o seu sentimento infantil a fez igual a todas as crianças que, como ela, estavam no ônibus. Claro, o nível de abstração do conhecimento ideológico, jamais poderia ser dominado por Alice. Nela estava o prazer do momento e de que aquele acontecimento a fazia feliz. Alice não poderia alcançar e atentar para essa situação.
Como transparece o estudo da Fundação Abrinq (2018), 17 milhões de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos vivem na pobreza no país. Para ela todas as crianças são iguais. Esse seria o ideal. O que me faz transportar a Rousseau (1762) no seu livro Emilio: “O homem nasce bom e a sociedade o corrompe.” Corrompe no sentido que o homem é reflexo da realidade histórica em que se situa. Como seria bom se nós vivêssemos no mundo de Alice, sua visão, seu pensamento ingênuo e puro prevalecesse sobre a dureza da vida real.
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OPINIÃO - 22/11/2024