João Pessoa, 18 de julho de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Duas coisas boas do processo civilizatório: o turismo e a hotelaria. Estes espaços descobertos deram origem à expansão da cultura e o descortinar de outras civilizações. As influências etno-culturais e o cultivar de sentimentos comuns de fraternidade e cortesia, transformam-se em hospitalidade.
Tudo começou na Grécia Antiga com atividades econômicas, por volta do sec.VII a.C., através de eventos desportivos. Os jogos olímpicos tornaram-se importantes sendo realizados a cada quatro anos na cidade-estado de Olimpia. Atraiam atletas como também espectadores. Motivaram as primeiras viagens de laser e serviços de hotelaria. No Brasil, o turismo e a hotelaria chegaram juntos com a colonização portuguesa, que no início utilizaram casas, escolas e mosteiros, como hospedaria.
Em São Paulo, foram criadas hospedarias mais requintadas que evoluíram para hotéis. Sendo o maior marco da hotelaria brasileira, o Copacabana Palace Hotel foi inaugurado em 1923, na década de 20 do século XX. O Conselho de Turismo da Confederação Nacional do Comércio completou 50 anos em 2005, fato esse que comprova a evolução das atividades do Turismo e Hotelaria, como fenômeno de relações interpessoais, fonte de emprego, de renda, de conhecimento e paz social.
Num artigo publicado pela Revista Mangaio Acadêmico, 1, n° 1, jan/jun 2016, os alunos Daniel Wendell Gonzaga de Almeida et ali, da Universidade Federal da Paraíba, descrevem os primeiros hotéis na cidade de João Pessoa que, de acordo com Leandro (2006), surgiram no início do século XX, dos quais mereceram destaque o Hotel Globo e o Hotel Luso-Brasileiro, localizados no bairro do Varadouro. O Hotel Globo foi o primeiro a entrar em funcionamento, sendo inaugurado no ano de 1915, na Rua Visconde de Inhaúma, atual João Suassuna. Salientava-se por possuir luz elétrica, água encanada em todos os quartos e gabinetes de toaletes higiênicos (LEAL, 2001). Obedecia, assim, os pontos básicos para o turismo: o transporte, a hospedagem e o atrativo. A hotelaria e o turismo formam um binômio inseparável. O hotel, então, é compreendido como um estabelecimento que oferece um bom serviço de alojamento, de refeições, bar, tratamento de roupas, informações turísticas.
O Hotel Globo satisfazia todos esses critérios.
Vejam como as vidas se entrelaçam e os conhecimentos acontecem. Tinha curiosidade de saber sobre a origem do Hotel Globo, porque meu pai quando veio trabalhar na Paraíba, engenheiro baiano recém formado, no primeiro momento hospedou-se nele, mas logo saiu em razão de ser caro e não tinha condições de se manter. Hoje, em reencontro com as colegas de colégio descubro que Eliete Siqueira Barreto, minha amiga, o Hotel Globo pertenceu à sua família.. Aí começa uma longa história.
Eliete Inicia fazendo uma abordagem de contexto como a família foi proprietária desse Hotel. Eliete morava na Av. Almirante Barroso e seu avô, Henrique Siqueira, conhecido como Marinheiro, na Praça São Pedro Gonçalves. Ele é natural da cidade de Cabaceiras. Casou-se com Aureanita Guimarães Siqueira, e tiveram 8 filhos: cinco mulheres e três homens. Todos casados e bem sucedidos. As mulheres foram muito bem educadas, receberam educação integral das Irmãs do Colégio das Neves. Além da parte intelectual dominavam prendas domésticas, sabiam cozinhar muito bem, bordar e tocar piano.
Segundo Eliete, seu avô foi um batalhador, desde os 15 anos teve. O seu bisavô morreu cedo, deixando uma enorme família e, que como mais velho, teve que lutar para criar e ajudar seus irmãos. Sua avó era eximia cozinheira e ajudava-o muito na lavagem da roupa e na cozinha fazendo pratos especiais: moqueca de peixe, peixe a escabeche, bolinhos de batata, filé de peixe ao molho de camarão, leitão ao forno, tudo isso era cozinhado em forno de lenha. “Ela fazia um fígado acebolado que era a especialidade preferida da casa”. Tudo feito nas panelas de ferro que davam outro sabor. Enfatiza que ele sempre apresentou muito tino para negócios e empreendedorismo “tudo o que ele fazia dava certo”. Continuou relatando: “O seu primeiro hotel foi na rua Visconde de Inhaúma, 37, fundado no ano 1915.
Com os boatos correntes na época que iam demolir o prédio para construir uma praça, ele tomou a iniciativa de transferi-lo para a Praça São Pedro Gonçalves. Inicialmente, o Hotel ficou no casarão onde morava, mas depois construiu um prédio com dois pavimentos para proporcionar mais conforto aos hóspedes. Ele tinha um gosto muito apurado e adorava objetos de arte, tudo utilizado era de qualidade, muitos dos objetos eram importados da Europa: a louça de porcelana inglesa e talheres fracalansa de prata, as taças de cristais; os salões eram ornamentados e contornados com espelhos e lustres de cristais, móveis em estilo inglês, finos, de bom gosto. O Hotel era o glamour do momento.” Hoje, diz Eliete, só conseguiu salvar alguns espelhos que têm como relíquias e que serão doados a seus filhos. “O Hotel tomou grande impulso, tornava-se ponto de encontro de autoridades, políticos, senhores de engenho, jornalistas e viajantes. Na época era o mais luxuoso da cidade.” Ressalta um fato curioso. Seu avô não fazia discriminação social dentro do Hotel. Neste sentido, ele narrava um episódio que chamou sua atenção; foi uma discussão que teve com uma figura do alto escalão da presidência da República, porque achava que devia haver separação entre as pessoas mais humildes, daquelas que tinham mais dinheiro. Costumava usar uma frase que ficou gravada em sua mente, que ele usou como resposta ao politico que queria que houvesse a discriminação. Dizia: “Excelência, o diabo vai carregar muita gente por esses dias, mas o nome do Hotel Globo e sua placa vão perdurar enquanto eu viver”. O Hotel tinha um regulamento de convivência e o hóspede que tentasse violá-lo era expulso.
Com o tempo seu avô ficou adoentado, chamou seu filho para administrar o Hotel. Nesta ocasião, Eliete, passou a residir com a família na cidade baixa, e aí permaneceu o restante de sua infância. Lembra ela como o tempo era bom, de distrações simples, mas que a fazia feliz, como: descer e subir ladeira, brincar de carro rolimã, com os meninos de rua, sem nenhuma preocupação, pois todos ali eram uma verdadeira família. Todo mundo se conhecia e se respeitava. Frequentava o convento dos frades franciscanos, recorda do frei Amadeu, alemão, que gostava de uma cerveja, frei Valdomiro, que era muito bonito, parecia Sto. Antônio. Na igreja, assistia missa. Com o seu pai administrando o Hotel, ele quis criar ao lado do terraço um barzinho para abrigar intelectuais, jornalistas, tornando-o mais atrativo. Nessas reuniões eles faziam poemas homenageando o Hotel e seu pai, que no calor dos elogios e emoção, liberava tudo, comiam e bebiam de graça, porque ficava constrangido de cobrar, o que contribuiu, também, para a debacle. O entardecer era memorável, o sol se punha e seus raios batiam no Rio Sanhauá e emitiam reflexos que iluminavam toda a paisagem, tornando as pessoas que assistiam da sacada do Hotel, extasiadas com aquele cenário exuberante e inesquecível.
A decadência do Hotel começa com o aparecimento e concorrência de outros hotéis, no avançar para a cidade alta, como o Paraíba Palace Hotel, depois o Hotel Tambaú e o surgimento de novos na orla marítima. Ocorre o êxodo inevitável da cidade baixa para a cidade alta. Com essa forte disputa, tudo ficou muito difícil, seu pai não consegue levar o negócio adiante, entra em depressão e então assumem o Hotel sua mãe e seu irmão, Carlos Henrique Paiva Siqueira, recém formado em engenharia e especialista em engenharia de pontes. Foi para o Rio de Janeiro trabalhar na ponte Rio Niterói e ainda hoje presta assessoria. A família tinha tudo e vivia bem. Com o decair do Hotel, viu tudo desmoronar, surgem dificuldades para arcar com os encargos financeiros, o que repercutiu também na família. Seguiram dias difíceis, mas, a duras penas, conseguiram pagar as dívidas existentes. Diante da situação resolveram alugar o Hotel para um empresário da cidade, mas este, por sua vez, não cumpre o contrato e sempre claudicante nos pagamentos, resolve, contrariando toda família, transformá-lo em motel. Com o tempo e sem manutenção, o prédio deteriorou-se. Nessa circunstância o Hotel foi tombado pelo IPHAN em 1980, como primeiro hotel da cidade, e desapropriado em 1988 pelo governo estadual. Veio o novo governo e este comprometeu-se com o patrimônio do Estado e o Hotel foi totalmente restaurado, transformando-se em museu.
No início, foi realizado um convênio com o governo espanhol e com essa ajuda ele tornou-se uma escola oficina de aprendiz de jovens para dominar a técnica de restauração de monumentos. Para a reinauguração a família foi convidada e compareceu. Nesse período, ele viveu uma época áurea, recebeu muitas visitas de turistas, funcionou na sua plenitude. Aos visitantes era contada toda história da Paraíba que começou por ali, às margens do Rio Sanhauá. Nessa ocasião Eliete foi procurada pela secretária de Turismo, que gostava de história, argumentando que o prédio sem nenhum móvel não havia sentido de os turistas visitá-lo. Foi pedir à família alguns móveis e objetos para colocar lá. Eliete solicitou aos demais familiares que tinham também herdado alguns objetos, para doarem. A família toda concordou. Acreditando piamente no governo, Eliete fez um contrato de comodato. O que aconteceu? Com a saída do Governador e a entrada de outro em 2011, o Hotel passa para a Prefeitura. Os móveis e objetos cedidos em regime de comodato deveriam voltar para a família. Eliete possui o contrato com a lista de todos objetos que foram entregues pela a família e disse: “logo passe essa onda da pandemia, vou contratar advogado para ir atrás dos nossos bens.”
A vida de Eliete esta entrelaçada com a do Hotel Globo, como não podia ser diferente. Viveu sua infância, adolescência e juventude, os verdes anos de sua linha do tempo, naquele ambiente que lhe ensinou e proporcionou descortinar o mundo. Conta: “conheci meu marido, Tito Kardercino de Vasconcelos Barreto, quando ele ia buscar um amigo que era hóspede permanente, começamos um flerte, conversávamos, e numa das vezes ele pegou na minha mão, aí começamos a namorar e com um ano e pouco casamos. Antigamente era assim, o dar as mãos numa relação representava um ato de muita emoção e sentimento. No início, pensei que não iria dar certo em virtude que era 19 anos mais velho. Mas, ao contrário, tudo foi ajustado. Meu marido foi um homem e um pai exemplar, carinhoso e extremoso. Nunca nos faltou em nada.” Adiantou justificando:” Ele veio de família humilde e lutou muito para chegar onde chegou. Não sentia dificuldade em fazer alguma coisa. Estava sempre encontrando a solução, o que nos deixava muito tranquilos.
Eu constatei ao casar que a vida já tinha sido sua escola e ele era bastante amadurecido e compreensivo. Tivemos na família harmonia e afinidade no casamento até a sua partida.” Seu pai depois que perdeu o que tinha sido a razão do seu viver e do impulsionar sua vida, nunca foi mais o mesmo e não se recuperou. Passou os restantes onze anos em profunda depressão e tristeza que nunca o abandonou até o coração parar de bater no dia 5 de outubro de 1999. Hoje, Eliete, viúva, considera-se uma mulher vitoriosa, que não deixou se abater, pois quando perderam o hotel, o maior bem da família, foi à luta e conseguiu vencer com coragem e determinação. Apesar das adversidades e vicissitudes sofridas, seguiu em frente e encontrou forças para soerguer-se e construir uma bela história de sucesso.
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OPINIÃO - 22/11/2024