João Pessoa, 19 de julho de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A polêmica que incendeia o país, dentre tantas outras não menos insignificantes, é se o voto deve ser impresso ou não. Há defensores e detratores ardentes, com argumentos os mais estapafúrdios, de ambas as partes, deixando de lado a necessidade de se discutir uma reforma eleitoral decente, que impeça a reeleição, traga o fim da imunidade parlamentar e extinga os privilégios a parlamentares municipais, estaduais e federais. Junte-se a isto, a aplicação das leis que punam excessos e fraudes, alijando da política, definitivamente, fraudadores e bandidos.
Essa discussão calha bem com o teor do conto “A Sereníssima República”, de Machado de Assis (Papéis Avulsos), em que o cônego Vargas, proferindo uma conferência científica, diz ter descoberto, estudado e sistematizado o idioma araneída, a partir da observação de algumas aranhas. Decidido a dar uma organização social àqueles animais, tão virtuosos na sua vida de fiar, tecer, trabalhar e morrer, sem arrancar nada a ninguém, o cônego começa por adotar o sistema eleitoral da Sereníssima República de Veneza, através da eleição por sorteio.
O problema é que todas as práticas adotadas para o sorteio, aumentando e diminuindo o tamanho do saco tecido pelas “Mães da República”, as aranhas escolhidas para essa finalidade, ou modificando o formato do saco, nada salvava o processo eleitoral de falhas normais e de fraudes, que, com o tempo, se tornaram mais frequentes. As aranhas poderiam passar a vida a tecer e destecer o saco das bolas do sorteio, como Penélope, à espera de Ulisses. Mas se Ulisses não chegar, para pôr cobro à ação dos pretendentes, esse processo será inútil, como ficou observado dentro da Odisseia. Ulisses precisa retornar, porque ele é a sapiência, diz o cônego Vargas.
Ora, o conto é uma delícia de ironia sobre o sistema político, tendendo sempre à fraude. Não faltam sequer os partidos que querem para si o monopólio da verdade. O Partido Retilíneo, que insiste em dizer que a tecedura de teias em linhas retas representa a probidade, os altos anseios republicanos, enquanto que a tecedura em linhas curvas, prerrogativa do Partido Curvilíneo, seria uma prova inquestionável da improbidade, ao que retruca o Partido Reto-Curvilíneo, que a probidade, a verdade e os sentimentos nobres não podem acontecer senão juntando retas e curvas, ainda que o quarto partido, o Anti-Reto-Curvíleno, negue todos os princípios… Não poderia existir melhor alegoria da política brasileira.
Os argumentos do filólogo e cientista político, explicando que, apesar das evidências que apontavam o escolhido no sorteio, o nome, na realidade, era de outro, antecipam os jogos retóricos tão comuns na nossa viciada Inquietantíssima República, onde o tudo é nada e o nada é tudo; o certo é o errado e o errado é o certo.
Do mesmo modo que nos faltam Homeros, não pela razão apontada por Camões, mas porque os Príamos de hoje procuram a sombra e o silêncio, e tudo se passa como se Aquiles não tivesse matado Heitor, conforme diz Machado, no Capítulo CXXV de Dom Casmurro, “Uma Comparação”, faltam-nos Ulisses. Os que temos deixaram que a esperteza se sobrepujasse à sapiência. O resultado é a hybris (ὕβρις), o descomedimento que toma conta de todos os partidos, fazendo com que misturem as suas sandices, de tal modo que todos são, ao mesmo tempo, tudo e nada. Enquanto Ulisses não chega, não sob a forma de um salvador da pátria, mas sob a grande metáfora da prudência, continência, reflexão e sabedoria, a Sofrosúne (Σωφροςύνη) que os gregos tanto admiravam e cultivavam, não sairemos da retórica vazia, que alimenta dia-a-dia o descalabro.
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