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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

A Língua e o uso

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publicado em 25/07/2021 ás 07h35

A língua não é estática, como querem os que se apegam ferrenhamente à gramática, nem a língua é tão dinâmica como desejam ardentemente os linguistas. Independente e senhora suprema, a língua paira acima de gramáticos e linguistas, fazendo concessões aos seus usuários. Mas essas concessões ocorrem com parcimônia, embora, quando importantes, terminem por se impor, porque o uso é o único senhor de quem a língua, apesar de soberana, acata modificações.

Não há qualquer novidade nisso. Os escritores, que são criadores por excelência e que alimentam a norma culta da língua, sabem disso. Veja-se, por exemplo, o que o poeta latino Horácio disse, há mais de dois mil anos, quando reconheceu o domínio do uso, em três hexâmetros da sua Epistola ad Pisones, conhecida entre nós como Arte Poética (verso 70-72):

Mūltă rĕnāscēntūr quǣ iām cĕcĭdērĕ, cădēntquĕ
quāe nūnc sūnt ĭn hŏnōrĕ uŏcābŭlă, sī uŏlĕt ūsŭs,
quēm pĕnĕs ārbĭtrĭŭm ēst ēt iūs ēt nōrmă lŏquēndī.

Muitos vocábulos que já caíram renascerão, e cairão agora
aqueles que são considerados, se o uso quiser,
que tem o poder da decisão, do direito e da norma do falar.

Os gramáticos, muitas vezes, se apegam aos fósseis linguísticos, movidos pela crença no purismo da língua e argumentando estar em sua defesa. A primeira lição para os puristas é que não existe língua pura. Todas as línguas apresentam ramificações entre si, mesmo aquelas que parecem não ter uma origem conhecida como o basco, o húngaro e o finlandês. Já os linguistas se apegam às modificações, muitas vezes efêmeras, porque esse é um material de trabalho dinâmico e abundante, mas pouco dele permanece. Muitas vezes é só modismo. As modificações importantes não são fruto de decretos ou do desejo de uma militância política, ignorante dos mecanismos da língua e confundindo gênero com sexo, a querer impor às demais pessoas usos que a língua não abona.

A língua latina possuía três gêneros: o masculino, o feminino e o neutro. Os dois primeiros gêneros se aplicam tanto às pessoas e animais, envolvendo, portanto, o sexo. O neutro, que significa que não é nem um, nem outro (ne uter), se aplicava às coisas, embora a palavra mar, que é um ser vivo, seja neutra – mare, maris. Na evolução do latim para o português, o gênero neutro foi deixado para trás, restando apenas alguns traços, como os pronomes isto, isso e aquilo. Atente-se para o fato de que evolução não significa que algo mudou para melhor, nem na evolução da espécie é assim, mas que algo se expandiu e se abriu para além daquilo que era. Uma coisa é uma língua ter uma concepção de gênero neutro, outra coisa é desejar uma neutralidade da língua, por insatisfações pessoais ou por querer que, a ferro e fogo, todos adotem uma incoerência linguística sem precedentes. Mais do que um artificialismo, trata-se de um autoritarismo. Lembremos que Mussolini tentou fazer essa intromissão, querendo eliminar o pronome “lei” da língua, por não achá-lo devidamente italiano. Não funcionou. Com a queda do ditador, as pessoas voltaram a utilizá-lo, servindo para o masculino e para o feminino – ele/ela.

Vejamos como agiu o uso, na língua portuguesa, com a segunda pessoa do plural. No português do Brasil, não se fala, nem mais se escreve utilizando vós. É raridade, peça de museu. O pronome tu anda no mesmo caminho. Tu e vós estão sendo substituídos por você e vocês. O fenômeno se dá por causa da flexão difícil nessas pessoas. Mesmo em determinadas regiões do Brasil em que o tu é utilizado, se ficarmos atentos a seu emprego, veremos que a flexão verbal nem sempre está em sintonia com o pronome. As combinações dos pronomes oblíquos me, te, lhe, com os demonstrativos o, a, os, as, na formação sintética de objetos direto e indireto, foram simplesmente proscritas da fala e da escrita no Brasil.

Caso semelhante acontece com a forma verbal chamada de Pretérito mais-que-perfeito. Não existe nada que seja mais-que-perfeito. Ou é perfeito ou não é perfeito. A nomenclatura desse tempo verbal nos diz que o pretérito perfeito não é tão perfeito… Essa confusão se dá pelo desconhecimento do que é aspecto verbal: o que se chama de pretérito perfeito é uma ação concluída no presente; o que se chama de pretérito mais-que-perfeito é uma ação concluída no passado. O que aconteceu com o pretérito mais-que-perfeito simples na língua portuguesa do Brasil? Simplesmente não se usa mais, nem na escrita e nunca na fala. Foi substituído pela forma composta: cantara/tinha cantado; saíra/tinha saído; comera/tinha comido. Desse modo, o pretérito perfeito simples assumiu os dois aspectos verbais de uma ação concluída no presente (pretérito perfeito) e uma ação concluída no passado (pretérito mais-que-perfeito).

O uso leva as pessoas a dizer “eu vim aqui para resolver um assunto”, em lugar de “eu venho aqui resolver um assunto”. Mesmo sem saber, as pessoas estão fazendo um bom uso do aspecto verbal. Como o verbo vir é um verbo de movimento, a ação não-concluída no presente é “eu venho”. Se eu já cheguei aonde queria, trata-se, então, de uma ação concluída no presente: “eu vim”. Embora alguns achando-se mais correto do que as nuanças do aspecto verbal, ironizem ao ouvir “eu vim”, respondendo “veio e já foi?”. É a incompreensão do uso natural do aspecto verbal, que a língua não tem qualquer esforço para exprimir. Esforço é a tmese, quando do emprego da mesóclise, no futuro do presente e do pretérito – far-te-ei, calar-me-ei –, por isso mesmo está em queda livre, em direção ao buraco negro do desuso.

Interessante é o uso de “queria”. Empregamos o pretérito imperfeito do indicativo naturalmente, sem nos darmos conta de que deveríamos usar o futuro do pretérito – “quereria”. Embora, as pessoas ironizem com muita frequência o “queria”, perguntando se já não queremos mais, o fato é que aí se encontra uma forma de polidez, uma maneira gentil de se falar. O francês costuma dizer que “eu quero é a palavra do rei” (je veux, c’est le mot du roi), e emprega o condicional “je voudrais” ou “j’aimerais” (eu gostaria ou eu amaria), como formas de ser gentil com o outro. No nosso caso, não temos, necessariamente, essa consciência da gentileza e usamos “queria” intuitivamente e por uma questão de eufonia: vamos e convenhamos, a forma “quereria” é muito ríspida. Podemos até pensar numa haplologia (fenômeno mais amplo que a síncope), a queda da sílaba medial: quereria > queria.

Enfim, cada um de nós é um pouco responsável pela consolidação do uso, mas isto tem de acontecer naturalmente, não porque grupelhos assim o decidiram. A língua, meus caros, não é só independente, ela é rebelde. O fato de haver uma prescrição gramatical ou lexical não significa que será usada. Mas também, indo na contramão dos autoritários, não se pode proibir ninguém de utilizar.

* Os textos dos colunistas e blogueiros não refletem, necessariamente, a opinião do Portal MaisPB