João Pessoa, 05 de agosto de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A profissão é um trabalho ou atividade especializada dentro da sociedade. Profissional é toda pessoa que incorpora conhecimentos, conteúdos e habilidades exclusivas que são aprendidas, incorporadas e se constituem objeto de sua formação, adquirida em cursos nas instituições de ensino.
Estas lhe conferem certificado de aptidão dentro da área estudada, como médico, advogado, engenheiro, biólogo, enfermeiro, assistente social e outros. Cada profissional, ao exercer a profissão, atua em determinada área do conhecimento e ninguém pode executar as atividades que lhe são próprias a não ser aquele da mesma formação.
O homem, nessa abordagem, envolve aspectos a considerar: a profissão que é a parte dele, se constitui dos conhecimentos técnico científico de qualificação que são as ferramentas de domínio cognitivo e psicomotor e lhes fornecem as competências para intervir na realidade situada. A outra parte diz respeito ao domínio afetivo que toca a dimensão social e humana. Esta não se aprende nos bancos acadêmicos; a pessoa traz consigo e não se pode separar, vem carregada de valores éticos, morais e religiosos que foram aprendidos desde os seus primórdios no seio familiar e na escola.
Cada ser é único, porque está submetido ao processo de interação que realizou entre o ambiente social em que viveu e vive e a realidade histórica contextual que o construiu. Dessa condição ninguém pode escapar. Às vezes, tenta-se modificar, racionalizar, porém, o que está arraigado no âmago do homem é tão forte que acaba influenciando suas ações. Profissional X profissão fazem parte do mesmo mundo holístico do homem, não existem dicotomizados, integram o ser humano determinado por sua realidade histórica ao mesmo tempo que cria sua própria realidade nesse movimento dialético de construção.
Tenho uma amiga que é Assistente Social das mais notabilizadas e que sempre exerceu sua profissão com a maior lisura e competência, Cléa Moura Martins. Conversando contou-me um caso aterrorizante que a surpreendeu no seu exercício profissional. Disse: “na vida profissional a gente não só colhe flores. No meio das flores tem muitos espinhos. Uma certa ocasião, quando chegava ao Hospital Edson Ramalho para trabalhar, adentrou uma senhora com uma filha, bem novinha, parecia um botão que estava desabrochando, de doze anos.
Virgem e inocente, porque víamos que era realmente uma criança. Há casos nessa idade em que já são até mães. Foi consultar-se com a médica e quando esta a examinou, logo depois foi à minha sala e falou: “Cléa eu vou solicitar os exames complementares, mas eu estou notando que essa garota está com CA de colo uterino”. O que causou surpresa, por ser uma menina nova que não tinha vida sexual ativa.
O hospital não admitia menor, mas a equipe se envolveu tanto que o caso terminou sendo uma exceção, concedida pela administração, e assim foi admitida. O grupo compartilhou, cada uma dando o melhor de si e fazendo com que se sentisse acolhida. Era a nutricionista que satisfazia a solicitação quando queria comer uma coisa diferente e o hospital não tinha, mandava comprar. Eu ia todos os dias à enfermaria visitá-la e quando não, ia à minha sala.
Aproximava-se e eu procurava conversar coisas que a distraísse, deixando-a sempre à vontade. Isto acontecia comigo e com os outros profissionais que nutriam carinho por ela, desde o diretor até os serviçais. A doença lhe causava sofrimento, muitas dores e Sheila dava entrada no hospital com crise, passava uns dias, melhorava, e voltava para casa. Eram idas e vindas do hospital para casa e vice-versa. Numa dessas saídas teve uma nova crise e levaram-na para a Maternidade Roberto Granville, que aceitava casos como o da paciente.
Havia também o Hospital Laureano, mas relutava em ficar noutro hospital que não fosse o “Edson Ramalho”. E assim era transferida para lá. Por quê? Sheila necessitava de cuidados e não podendo levar uma vida normal como outra adolescente de ir à escola, a um parque ou a uma praia, como desejava, pois, diversas vezes expressou essa vontade. Ali encontrava o carinho de todos que lhe dispensavam um tratamento humano e diferenciado, fazendo-a feliz no ambiente nosocomial. Lembrei-me de meu pai, no hospital depois de uma cirurgia de câncer de bexiga, que tempos depois levou-o a óbito.
Nós, familiares, fizemos uma planilha para dar assistência durante sua permanência no Hospital Santa Paula; ele nunca esteve só porque sempre era muita gente visitando-o fora aqueles que eram obrigados pela escala, que o fizéssemos. As enfermeiras que o cuidavam disseram numa oportunidade: “Dr. Serafim, aqui o senhor tem tanta gente e o senhorzinho dali do quarto em frente, não aparece ninguém, ele é tão só.
Meu pai respondeu: “Há coisas na vida que são mais importantes que o remédio”. Ele referia-se à dimensão humana necessária a todo doente. Talvez como o hospital Edson Ramalho não costumasse ter esses casos, os profissionais que lá atuavam, sensibilizavam-se e devotavam-se à assistência embutida de carinho, amor e dedicação, atenuando o sofrimento de Sheila. Esse calvário durou um ano e meio.
Durante a enfermidade, houve diversas admissões no hospital. Todos os funcionários individualizaram o caso e nele se envolveram. Cléa não era diferente, por temperamento, já que é aquela pessoa que possui um coração grandioso que se debruça sobre os problemas dos outros e faz de tudo para poder ajudar e minorar a situação. Desdobrava-se para manter a harmonia daquela paciente e sua família.
Chegou um momento em que o pai, pedreiro, adoeceu e devido ao seu comprometimento no caso, disse: “Deixei de ser Assistente Social e passei a ser Cléa a pessoa humana. Eu não dirijo, tomava um táxi, ia buscá-lo levava ao Posto de Assistência Médica-PAM, de Jaguaribe, pelo fácil acesso tinha imediato atendimento. Ia à farmácia e comprava as medicações. Como Assistente Social jamais podia fazer isso. Pagava o taxi e mandava deixar na sua casa. Isto acontecia, também, com a Isabel, quando adoecia”.
Na última internação Sheila já não via quase nada, problema causado pelo agravamento da doença. A metástase atingiu a visão. A equipe combinou fazer a primeira Eucaristia de Sheila. Cada um colaborou com uma coisa: Cléa deu o tecido, sua auxiliar costurou o vestido, a psicóloga deu os santinhos, sua mãe e sua tia deram um bolo muito bonito. As enfermeiras encarregaram-se das flores e da decoração da capela e do ambiente. Então, no sábado, foi realizada a cerimônia da primeira comunhão, com carinho e emoção daqueles que já haviam criado laços afetivos com Sheila, durante aquele tempo em que trocava o hospital por sua casa. Participou do evento, porém muito fragilizada, estava já em fase terminal, não conseguiu ficar até o fim. Logo a seguir, na quarta-feira, o quadro piorou e veio a óbito, diante da equipe que não continha emoção de ter convivido com aquela pequena criatura, doce, meiga e tão carente menina moça: “Está naquela idade inquieta e duvidosa; Que não é dia claro e é já o alvorecer; Entreaberto botão, entrefechada rosa; um pouco de menina um pouco de mulher; Procura-se a mulher e encontra-se a menina; Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!” (Machado de Assis).
A pedido de sua mãe o velório foi realizado no hospital e um lugar foi reservado para isso, de onde saiu o féretro. As flores que enfeitaram sua eucaristia ainda estavam vivas e puderam enfeitar o seu esquife. Os que conviveram e também participaram do seu calvário, sentiram que o Senhor a fez descansar no alívio da sua eternidade. Momento emocionante!
Cléa deixou de trabalhar no hospital e depois de algum tempo, a mãe de Sheila, pára no seu portão, de taxi, e roga para que o pagasse. Disse Cléa:” mandei-a entrar, e, na conversa, pediu-me para que deixasse ficar na minha casa, por uns dias, porque havia se separado do marido e que ia para São Paulo para a casa da irmã. Tinha uma poupança e ia sacar o dinheiro para comprar a passagem etc. Com este meu jeito de servir coloquei-a na minha casa.
Mas Deus providencia tudo. Conversando comigo falou que havia conhecido seu marido no presídio, que até então não sabia que ele tinha praticado um crime e estava pagando seu artigo. O conheceu quando fazia visitas a seu pai que também era presidiário. Deus deu-me uma luz que devia falar com ela para que avisasse ao seu irmão que iria para São Paulo. Foi a minha sorte. Chegou a ir comprar a passagem, mas não conseguiu para o mesmo dia. Era próximo das festas Joaninas e o ônibus estava lotado. Estava com o filho e só havia uma cadeira.
O irmão fez confusão. Resultado: o marido soube e foi bater na minha casa dando escândalo e dizendo impropérios. Falando que ia me matar. Tinha antecedentes criminais. Entrei em pânico. A minha porta da frente estava fechada, mas a traseira aberta, mandei dona Isabel embora pela dos fundos, dei-lhe dinheiro que foi exigido pelo marido que era o valor da passagem, felizmente tinha em casa e disse-lhe: nunca mais me apareça. Reconheço que fui além do que a profissão de Assistente Social exige, agi com sentimento de uma pessoa humana. Seu marido veio matar-me. Passei esse livramento. Quando saía à rua era com medo de encontrá-lo. Hoje estou mais tranquila, fiquei sabendo que faleceu. Passei por essa, minha amiga. A intensão foi fazer o bem. Não fui atrás, Isabel procurou-me. Recebi essa lição!”
A vida nos fornece experiências que vão acrescentando ao nosso ego evolução e nos aperfeiçoa cada dia mais. Cléa passou por esse episódio, mas não se sente arrependida porque no seu íntimo desejava ajudar ao próximo e isso tem a certeza que realizou, sente-se compensada com a felicidade que pôde proporcionar a Sheila no percurso de sua doença, o encontro com Deus eucarístico, o que demonstrava em seu semblante nos pseudos momentos de satisfação. Como se constata, ficou muito difícil para Cléa encontrar-se com a Assistente Social de formação e a Cléa pessoa humana que carregava no âmago de sua alma.
O homem não é um robô e por mais que se esforce para separar o profissional e a profissão não consegue. Isto seria abandonar seu próprio princípio de humanização. São inseparáveis.
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OPINIÃO - 22/11/2024