João Pessoa, 27 de agosto de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Se o maior crime que uma poeta pode cometer é escrever em uma língua que não seja vernácula, talvez o maior crime que possa uma colunista cometer seja comentar sobre algo sem ter a opinião inteiramente formada. Por isso, hoje, não indicarei a biografia do cantor Ney Matogrosso, escrita por Julio Maria. Até o momento de envio da presente coluna, li apenas 300 de suas 475 páginas.
Li essas 300 páginas balançando em uma rede no interior do estado, com um frio da gota serena, em um silêncio de ouvir apenas os grilos falantes. Nessas circunstâncias, talvez até mesmo uma bula de remédio se mostrasse leitura aprazível. Já sabia que Ney era o filho rebelde de um militar austero, mas pude desvendar mais nuances da infância do cantor. Conheci a sensibilidade e o cuidado que Ney dedicava às crianças doentes de um hospital, quando atuava como enfermeiro.
Descobri que Ney, nos tempos dos Secos e Molhados, recusava-se a dar entrevistas maquiado, porque as cores compunham um personagem destinado exclusivamente ao palco.
A pesquisa realizada pelo jornalista Julio Maria é tão completa que chega a constranger, com detalhes extremamente íntimos sobre a vida do cantor. Fosse sobre outro artista, como Roberto Carlos, é possível que revelações de cunho tão pessoal desembocassem em ações judiciais. Como não lembrar do movimento Procure Saber, que contava com nomes que lutaram bravamente pela liberdade de expressão durante a Ditadura Militar, mas reivindicavam a exigência de autorização dos biografados para publicação, em pleno século XXI?
Por causa do trato jornalístico, o texto tem se mostrado mais rico e agradável do que Vira-lata de raça, fraco livro de memórias assinado pelo próprio Matogrosso. Enquanto a biografia faz um recorte histórico da vida e da obra do cantor, Vira-lata de raça se mostra raso, um amontoado de fotos do artista com notas sobre como ele vê o mundo.
Então, mesmo com tantos predicados positivos que até agora se mostraram, não acho correto indicar cegamente o livro biográfico, já que estou em sua reta final. Sugiro, porém, ouvir Ney cantar. Quando o artista entoa “Olha a banana! Olha o bananeiro”, sua voz me transporta para a rede em que li boa parte da biografia. No interior do estado, li sua vida e ouvi sua música, enquanto nas casas vizinhas, senhoras idosas saiam para espiar o almoço alheio.
Se há sangue mais latino do que o paraibano, desconheço.
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OPINIÃO - 22/11/2024