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A realidade pode ser mais cruel do que a ficção, mas nunca tão organizada. Ao tomar o poder no Afeganistão, o Talibã comprova que em qualquer momento de instabilidade política, os direitos das mulheres são os primeiros a serem retirados.
Na ficção, o romance O Conto da Aia, de Margaret Atwood (foto), apresenta um país em que as mulheres nada valem. Com um arranjo que só as repúblicas literárias conseguem cumprir, Gilead, cenário de O Conto da Aia, divide as pessoas de acordo com a utilidade que elas podem ter para o Estado. As aias, que constam no título, compõem a classe mais sofrida: são mulheres férteis forçadas a direcionar suas existências à procriação.
Atwood virou um fenômeno do entretenimento mais de 30 anos após a publicação original de O Conto da Aia, em 1985. Parte de seu sucesso recente é devido à adaptação em formato de série, que conta com a brilhante Elizabeth Moss como a aia principal. Por outro lado, uma parcela do sucesso deve-se aos fantasmas contemporâneos das políticas de poder.
A obra não é uma unanimidade, porque críticos apontam um excesso de representações violentas nas cenas. O fato é que a violência contra a mulher existe e é desconcertante – não haveria como sua metáfora distópica ser agradável.
O livro já expandiu tanto as margens literárias que podemos falar de um “aiaverso”, ou seja, um universo de versões da obra acumuladas em diversas mídias. Tanto o texto original quanto a série são oficiais, mas nem sempre suas narrativas são compatíveis. Em 2019, a autora publicou um novo romance passado em Gilead e seus arredores, acompanhando a realidade de outras mulheres no regime, como a filha de um comandante.
O romance contradiz os rumos tomados na televisão. Segundo a autora, o livro foi inspirado pelos questionamentos dos fãs sobre Gilead, bem como pelo mundo em que vivemos.
Os castigos impostos em Gilead possuem requintes de crueldade. Uma mulher que lê, por exemplo, pode ter seu dedo cortado. Mesmo fora de um regime autoritário, perder um dedo seria uma experiência traumática para qualquer um.
A exceção talvez seja a mãe de Jô Soares. Em sua biografia, o gordo conta que a mãe perdeu dois dedos da mão, em decorrência de uma doença desencadeada pelo cigarro. Mesmo após chegar em casa da cirurgia, a senhora não conteve a piada: pretendia então fazer uma grande economia, pedindo 20% de desconto na manicure. Em Gilead, não existe a possibilidade de piadas – nem de manicures.
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OPINIÃO - 22/11/2024