João Pessoa, 30 de setembro de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Muita gente gostaria de viver eternamente. Como assim? Pararíamos de envelhecer ao atingirmos uma certa faixa etária ou continuaríamos encarquilhando e definhando e definhando? Difícil imaginar a vida ad perpetuam, como diria o latinista. Quer saber de uma coisa? A vida não faria o menor sentido sem a existência da morte. Afinal de contas, o que teríamos a desejar aos nossos inimigos ou àqueles seres cruéis e sanguinários como Hitler, Saddam e outros perversos que por aqui passaram? Muitos hão de dizer para sermos piedosos e praticarmos o perdão. Mas á verdade é que existe gente que adora a morte – dos outros, é claro – e também gosta de prestigiar a liturgia em torno da indesejada.
A morte é a única coisa somente nossa, que ninguém nos tira, já disse o poeta Jayme Ovalle, e por sua vez o filósofo Sócrates nos tranquiliza ao afirmar que “Se morrer for um sono sem sonhos, que bom. Mas se morrer for reencontrar todas as pessoas que eu amava e que se foram, que bom. Então parem de se desesperar!”
E pensando na morte lembrei de uma personagem de minha infância e adolescência que perdera o marido já na meia idade e elegeu como passatempo da viuvez frequentar velórios e contar as guirlandas enviadas por amigos e familiares e ler as frases contidas nas faixas anexadas às flores. Seu nome era Hermengarda, que nunca deixara de trajar preto após o passamento do marido. Penteado em coque, nariz aquilino e voz roufenha, não fazia rodeios nem ambages para lançar uma crítica acídula. Entrava no salão de velórios, cumprimentava os parentes do falecido com uma leve inclinação de cabeça quase imperceptível e logo seguia para contar as coroas de flores e ler suas faixas: Com amor de seus familiares; Com amor de sua esposa e filhos; Saudades de todos os seus amigos; Guardaremos com amor a sua imagem; O adeus não é eterno, é uma breve separação; Sua passagem foi breve mas sua obra será eterna; Viveste pouco para viver para sempre… e assim por diante.
A cada leitura balançava a cabeça num gesto de reprovação pois achava sem nenhuma criatividade essas mensagens inscritas nas guirlandas fúnebres. Como era mulher que gostava de ler poesia e apreciava os bardos portugueses, aproximou-se do ouvido complacente de um parente choroso do defunto que deixara viúva e dez filhos e tascou essa: Quando um dia eu enviar uma coroa de flores para o velório, minha frase será um verso de Pessoa, pois somos “Cadáver adiado que procria”.
Anos depois foi a vez da morte de Dona Hermengarda e um parente vingativo de algum falecido lhe enviou uma guirlanda e sabendo que ela não deixara filhos, escreveu na faixa “Foi um cadáver adiado que não procriou”. É, a vida (ou a morte) tem dessas coisas.
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OPINIÃO - 22/11/2024