João Pessoa, 17 de outubro de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
A colega há dois meses frequenta as aulas de hidroginástica. Uma coisa nos chama a atenção: a sua expansão, falando alto e sempre dizendo que está livre, que as aulas estão lhe dando liberdade. Tem dias que chega falante, porém, há outros em que está cabisbaixa. Violeta, a professora, conversou comigo fazendo a mesma observação. O que para nós não seria normal aquele comportamento. Ela parecia esconder alguma coisa. Com o passar do tempo aproximou-se da docente e foi aos poucos desnudando a sua vida e o que havia guardado em seu íntimo fazendo desabafos.
Lilian abriu o coração e revelou sua história. Moça humilde do alto sertão do Rio Grande do Norte, semianalfabeta, filha caçula de uma família de dez irmãos. Ficou órfã aos cinco anos. Seus irmãos mais velhos eram dados a prestarem serviços em casas de família. Não recebiam remuneração, eram compensados pelo prato de comida e hospedagem. Lilian era de beleza estonteante de rosto e de corpo, cobiçada pelos rapazes da redondeza. Casou-se aos 16 anos com Sérgio, militar, e veio morar na capital. O chama de paizinho. Teve três filhos uma mulher e dois homens, todos casados e encaminhados.
Nesse período de sua vida exerceu sempre o cargo de dona de casa trabalhando sozinha para criá-los, com jornada dupla de trabalho que a deixava exaurida de cansaço. Não frequentou escola e vivia enclausurada em sua casa. O seu esposo exercia a sua masculinidade exacerbada com espirito de superioridade reafirmado através dos “deveres” para com a família. Isto era o bastante perpetuado por todos esses anos, fazendo-a sentir-se submissa, sem voz ativa e nem vontade própria. Diz: ‘’Vivia escravizada, mas era melhor do que o tempo do interior”.
A Academia de Ginástica fica próxima à sua residência e Lilian, por muito solicitar ao companheiro, foi permitida que frequentasse aquele ambiente. Pareceu para ela um mundo novo, prazeroso, mas desconhecido, tudo era novidade. Um passarinho saído do ninho disposto a criar asas. Sentia-se livre e meia perdida, nunca tinha experimentado essa sensação. Foi o tempo passando e se adaptando àquelas oportunidades que se lhe apresentavam. É quando surge um passeio a um balneário, planejado pela turma da hidro. Todas colegas insistiram em sua ida e ela relutava que o marido não ia deixar, mas depois de pelejar ele terminou consentindo.
É chegado o dia do passeio. Logo no ônibus Lilian em voz alta desabou ao grupo que estava sentindo-se em liberdade, era debutante, nunca tinha saído de casa só. Revelou para o grupo que eram a ela impostas condições, chegando a detalhes nos critérios que até suas roupas internas e externas eram escolhidas por seu consorte. Foi motivo de graça e galhofa da turma. Naquelas palavras estava explicita a repressão a que era submetida. Na convivência ficou notório que era semianalfabeta e uma colega, professora do ensino público, aconselhou matricular-se na rede pública no Curso de Alfabetização de Jovens e Adultos e que ela poderia cursar. Lilian relutou colocando dificuldades, porém, devido a insistência da docente cedeu aos apelos e o seu ingresso ocorreu no curso. Em razão da pandemia todo procedimento era on line. Assim foi feito.
Os impedimentos foram sanados. Dava-se início a uma nova vida. Percebia-se todo entusiasmo e empenho em cumprir com as tarefas da escola. Em casa solicitava ajuda do esposo que não tinha paciência e aproveitava o momento para humilhá-la, destratando-a. Com seu bolodório grosseiro a chamava de imbecil, burra, etc. Desestimulava de todas as maneiras, a julgava incapaz e que deixasse aquilo que não ia levá-la a lugar nenhum. Na ocasião, um filho, que é engenheiro, presenciou a grosseria do pai e foi em defesa da mãe e era natural que ela não soubesse a conta de dividir pois nunca havia estudado, dando força e apoio à sua mãe, recriminando-o. Foi então que Sergio ouviu palavras que nunca esperou do filho e da esposa. “Eu vou continuar estudando e não tem mais quem me impeça”. No diário da família havia brigas e seu marido prometia expulsá-la de casa. “Saia de casa, eu não preciso de você”. Nunca havia tomado uma atitude e não retrucava porque olhava para um canto e outro, quando teve os filhos viu-se apegada a eles e agora, não tinha para onde ir. Vivia prisioneira. Incentivada pelas colegas, manteve-se nessa posição firme no propósito de estudar.
Num sábado, as colegas convidaram para almoçar comemorando o aniversário da professora e escolheram um restaurante de comida regional. Lilian ficou extasiada com tudo que via, achava extraordinário, como existia tanta comida e podia uma pessoa se servir de tudo, achou os garçons fantasiados de Lampião, foram muitas fotos para registrar todos os momentos, embora que fosse no celular da professora, a questão dos cartões que registrava o que ia comer, foi uma graça e admiração. “Meu Deus! tudo é muito lindo!”. “Eu amo vocês”. “Estou feliz”. Falando e abraçando as colegas. As amigas para impressioná-la ainda mais, resolveram comer a sobremesa no Mega Shopping e lá ficou enlouquecida, estupefata, maravilhada com o formato dele era de um navio. “Como pode? ela está dentro de um navio?”. Com emocional abalado de felicidade estampada em seus olhos e rosto, contagiava a todos que a acompanhavam. Repetia inúmeras vezes: “todos vocês são uns anjos em fazer isso por mim”. “Não tenho como agradecer à professora”. Esta, foi apanhá-la em seu carro, como condição para poder sair de casa. Inacreditável. Lilian parecia que vivia noutro planeta ou em outra época. Palavras são poucas e incapazes de expressar o que foi vivido e sentido por todos em constatar aqueles momentos de felicidade.
O machismo é uma questão cultural, vem desde dos nossos primórdios na Roma antiga, que foi a base estrutural social da humanidade. Concebia o homem líder e autoridade máxima da família, atribuindo-lhe poder como o de decidir sobre a vida e a morte de sua esposa e filhos. Observa-se essa desvalorização na Grécia antiga, passando pela Idade Média e se perpetuando ao longo da história. Nas famílias reais o filho varão era valorizado, pois garantia a perpetuação do poder. Nesse contexto, as mulheres são vistas como subservientes aos homens, vulneráveis à violência doméstica. Os homens são qualificados como superiores. No Brasil, a antropóloga e pesquisadora Cecilia Maria B. Sardenburg (1994), disse: “Durante o período colonial, o Brasil estava sob as Ordenações Filipinas, um legado da dominação da Espanha sobre Portugal. Segundo as Ordenações, a esposa não era exatamente a propriedade de seu marido, mas ele tinha total controle sobre ela e sua vida. Em caso de adultério por parte da esposa, o marido/patriarca tinha todo o direito de matá-la, em defesa da honra da família. Muitos homens que matam suas esposas no Brasil ainda são absolvidos, alegando que fizeram isso em defesa da honra – “a honra do macho”.
Na sociedade está arraigada a desigualdade de gênero, o que ajuda a entender a violência entre os próprios homens, haja vista a taxa de homicídios no estudo Atlas da Violência 2020, publicado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Os atributos dirigidos à mulher estão sempre em comparar com os parâmetros embutidos da visão machista, como os padrões da mulher ser amorosa, boa mãe, uma mulher que está disponível para o homem. Essa ideologia é criada a partir da aprendizagem em nossos primórdios querendo tipificar o perfil do ser homem ou ser mulher. Assunto profundamente estudado pela doutora, pesquisadora em psicologia social e institucional pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Helen Barbosa dos Santos.
Ainda se constata resquícios do pensamento machista inerente aos diversos aspectos da sociedade, como a economia, a política, a religião, a família, a mídia, as artes, etc. As mães criam suas filhas ensinando a ficarem em casa e ajudarem a arrumar nos afazeres domésticos, enquanto deixam seus filhos nas ruas brincando. As palavras proferidas em família: “homem deve ser forte. Não chora”. É como dissesse o homem macho não deve demonstrar os seus sentimentos e fraquezas, nem pedir ajuda, pois essas são “atitudes de mulher”. Com relação a mulher; “Sua comida está ótima, já pode casar”. Encontra-se sempre o papel subserviente que deverá ter a mulher. Há um senso comum de que as mulheres possuem características emocionais, como serem gentis, emotivas, compreensivas, indecisas e dedicadas, em razão disso são mais frágeis o que as fazem inferiores; já os homens são considerados competitivos, independentes, decididos, agressivos e fortes. É nítida a desigualdade de tratamento e de direitos entre os gêneros. Desde cedo são explícitos os diferentes papéis a desempenhar, ele é o líder de superior autoridade, fazendo perpetuar a ideia machista estrutural.
No pós-modernismo identifica-se uma evolução graças aos movimentos sociais e a legislação assegurando direitos às mulheres. A Constituição da República Federativa do Brasil determina em seu art. 5° que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, etc. Mas, apesar disso, ainda se verifica um quadro de violência, como o assédio (moral, verbal e sexual), a violência sexual e doméstica e o feminicídio. Para a neurocientista e filósofa Berit Brogaard, (foto) misoginia não é simplesmente odiar mulheres, mas odiar mulheres que não se comportam da maneira esperada pela pessoa que a descrimina. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela que de 1350 casos registrados de feminicídio, em 2020, 1 mulher foi assassinada a cada 7 horas no Brasil, e acrescenta: houve 12 denúncias de violência contra a mulher a cada hora e, pior, uma mulher foi morta a cada dois dias.
A problemática é cultural, infiltrada na conjuntura e na estrutura da sociedade. Isto decorrente de processo de aprendizagem incorporado ao homem quando adentra em contato com a civilização. É fenômeno que requer ser aprendido no desenvolvimento da humanização. Como ressalta Gikovate (1989): Cada pessoa é estimulada a aprender tudo àquilo que a cultura considera como importante no processo da vida em sociedade e é a partir dessa bagagem que certo padrão pessoal de vida masculina é inserido. A protagonista da história Lilian, encontra-se cheia de desejos, sonhos, objetivos e sentimentos que merecem ser integralmente respeitados e validados, ainda que tal comportamento requeira esforço e procedimentos que não faziam parte de seu cotidiano. Rompeu paradigmas que lhe eram impostos.
Ela agora é outra, com perspectivas e planos para o futuro. Se não tivesse frequentado as aulas de hidroginástica nunca iria enxergar o outro lado da vida. Como descreveu Platão na alegoria da caverna, onde ele narra que alguns homens, desde a infância, geração após geração, se encontram aprisionados em uma caverna e eles não conseguem ver o que se passa fora dali. O mundo resumia-se aquilo que ali estava. Certo dia conseguem libertar-se e começam a enxergar o outro lado da vida que os liberta e os faz felizes. Vivia aprisionada, não conseguindo ver nem usufruir das maravilhas que a vida contemporânea oferece. É assustador que em pleno séc. XXI exista tal situação.
Lilian segue em seu contínuo evoluir para libertar-se…
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TURISMO - 19/12/2024