João Pessoa, 17 de outubro de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Volto a falar de The Walking Dead, série que, no todo, mostra-se muito ruim, por repetir inúmeros clichês cinematográficos e, após 10 temporadas, não conseguir se decidir ou pelo menos indicar um rumo entre a permanência de um mundo em ruínas ou a sua reconstrução. Por que, então, retorno ao tema? Para falar mais uma vez de doutrinação, desta feita, como ela ocorre.
Os humanos que buscam uma reconstrução da sociedade se deparam com mais um vilão, situação que se arrasta por episódios e episódios, em inverossimilhanças irritantes. Diga-se que as inverossimilhanças são em relação à própria proposta estrutural da série. Explico: quando o espectador aceita ver uma série, em cujo enredo pessoas morrem e se transformam em zumbis, ele está fazendo um pacto tácito com a verossimilhança interna da narrativa. O que não pode acontecer é a repetição de insanidades pelos personagens, sem que aprendam com as besteiras que fizeram. A pior delas é querer, em um mundo sem leis, acolher e mudar pessoas violentas e psicopatas pelo humanitarismo.
Vamos à doutrinação. O grande vilão agora é um grupo denominado “Sussurradores”, por andar em meio aos zumbis, vestindo a pele do rosto retirada de alguns por eles mortos. Desse modo, o grupo consegue se confundir com os zumbis e orientá-los para os seus interesses, sobretudo contra aqueles que são declarados inimigos. Em lugar de um líder, está uma líder, autodenominada Alfa. Psicopata de carteirinha, ela sabe como manipular os seus comandados, através do castigo exemplar, claro, mas, sobretudo, com uma maneira calma, porém firme de falar.
O segundo no grupo é Beta, sujeito alto e forte, cuja agressividade e violência, não o impedem de sofrer a doutrinação de Alfa, a quem se submete sem hesitações, apesar de que bastaria uma investida contra ela para deixá-la fora de combate. Beta, contudo, não é um ignorante, analfabeto ou desprovido de espírito criador, como se poderia pensar. Não são apenas estes os passíveis de doutrinação. Beta é um artista famoso, cantor e compositor de música country, alguém, portanto, que pensa e que cria. Um artista é, poderíamos pensar, um ser ideal que está imune à doutrinação. Não é verdade. Artista também são cooptados. O que a série nos mostra é o que nós sabemos: todas as pessoas estão sujeitas à doutrinação, umas mais, outras menos, só basta encontrar quem ative esse gatilho. É verdade que, quando criamos um pensamento crítico que nos leva a reagir pela razão, quando construímos a nossa personalidade, procurando pensar e não repetir, a doutrinação fica mais difícil, mas não é impossível.
A doutrinação conduzida por Alfa, sobre os seus sujeitados e sobre Beta, que a sustenta com a sua aparência física a desencorajar qualquer discordância, é feita de modo sussurrado e sub-reptício, deslizando e se insinuando na mente de todos, como música suave. Não há necessidade de gritos ou de discursos virulentos. Em personalidades perdidas e que vivem em busca de um líder, basta acreditar que realmente este líder as salvou da desgraça. Perdido, Beta encontrou Alfa e à sua mansidão autoritária se entregou. A cena em que ele retorna ao hotel onde se apresentava, coloca um disco seu na vitrola e, da sacada, canta sussurradamente a sua música, para uma plateia de zumbis que parecem fãs em frenesi, diz muito da fragilidade dos que se entregam à doutrina. Começam repetindo para si mesmos os mantras, logos estão vociferando palavras de ordem criadas pelo líder e salvador inconteste.
É assim que ocorre com o bando, pois todos se julgam salvos por Alfa. Daí a repetição de frases como mantras, que os fazem ter certeza do que estão dizendo… Para Beta, por exemplo, tudo o que Alfa diz é incontestável. Ao segui-la sem titubear, ele demonstra o poder que tem a verdadeira doutrina. Beta não só não hesita com relação aos mantras doutrinadores de Alfa, ele também não admite que ninguém deles duvide, reagindo violentamente a qualquer tentativa de hesitação ou de discordância diante do que ele julga a verdade estabelecida. Alfa é, assim, venerada quase como uma divindade, cujo pensamento é perfeito, sem erros.
Se a série tem falhas gritantes, estes momentos pagam a pena de acompanhá-la.
Decididamente, a coincidência com a realidade não é mera semelhança.
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TURISMO - 19/12/2024