João Pessoa, 10 de novembro de 2021 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
“Esta lua” é e não é aquela lua que, romântica, derrama seus raios sobre as sensíveis enseadas dos amantes nas cálidas noites de solidão e de estrelas excitadas. É e não é aquela lua que prende seus punhos na rede soberba do infinito e que vagueia, doidivanas, pelo imaginário perplexo dos enamorados. Lua humanizada, vertiginosa, eufórica, refúgio privilegiado de um locus amenos que fez pousada em tantas imagens encantatórias de Castro Aves, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac e Alphonsus de Guimarãens, cristalizando uma tradição poética que se estende do romantismo e do simbolismo à pós-modernidade.
Esta lua certamente não é aquela desenhada no “paralelepípedo quebrado” de Augusto dos Anjos; uma lua que tem a cor da icterícia e que, em lugar de ostentar seus eflúvios dourados, arreganha seus avessos de sombra e de múmia sonâmbula a perambular, perdida, perdida e louca, pelo vazio monstruoso e doentio das noites de insônia. Esta lua é e não é aquela, porém, carrega, no dorso rugoso e áspero de sua grave melodia, os nutrientes de uma antitradição lírica que lhe assegura contínua e surpreendente possibilidade poética.
Esta lua, a lua de que falo, é a lua que aparece, renovada e reinventada, na cadência verbal de um poema que Sérgio de Castro Pinto publicou: primeiro, no Correio das Artes, e, depois, em A flor do gol.
Este poema (e a lua que o sustenta) é e não é de Castro Pinto. Se o poeta não se esquiva ao diálogo com a alta tradição (observe-se o verso “lambendo os dedos róseos da aurora”, colhido da chama iluminada e ainda fumegante de Homero), sobretudo tocada pelo traquejo de imagens visionárias, na melhor estirpe dos expressionistas e dos malditos, parece romper, contudo, com os paradigmas de sua própria poética individual, presidida, grosso modo, pelo sentido de contensão, de economia, precisão e objetividade.
“Esta lua”, sem perder o fôlego estético, intrínseco à cada pulsação vocabular, se é de Sérgio, é mais de Augusto que de João Cabral de Melo Neto; mais de Jorge de Lima que de Carlos Drummond de Andrade; mais de uma poética do excesso do que de uma poética do mínimo. “Esta lua” sem leveza, andarilha, tumultuada, pesa no rimbombar toante de suas rimas internas, na música noturna que se cantarola nas aliterações, ecos e assonâncias argamassados num corpo significante onde imagens e ritmo se conjugam, robustecendo, assim, a espessura semântica do texto.
As duas primeiras estrofes como que abrem o cenário para que a lua, “Esta lua”, desfile, disfórica, a convocar amantes e leitores, bichos e bêbados, putas e pederastas, para provarem de seu veneno agridoce que se derrama dos seus “raios extraviados” e se fertilizam na agonia dos seus “filhos enfurecidos ∕ proscritos e exilados”. Cito-as na íntegra:
esta lua cai feito uma luva
na praia da urca, na pedra da gávea
esta lua cheia é um túrgido ubre
espargindo leite sobre a madrugada.
pálida e sem luz, esta lua minguante
é leite com água, chama dos amantes.
candeeiro de luz bruxuleante,
hóstia andante de uma irmã de caridade,
esta lua é o branco marfim de um elefante
perfurando do céu o toldo estrelado,
mastodonte manso, pacificado,
urinando gotas de luar no gozo
dos amantes tristes e extenuados.
Se Sérgio, em particular, neste poema tão especial, finca os pés em vertentes mui ricas da poesia ocidental (Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Cesário Verde), também dialoga sutilmente com certas dicções afeitas à náusea e ao desconforto da vida, a exemplo de Murilo Mendes, Nauro Machado e José Alcides Pinto, realizando como que um corte intrauterino no seu modus operandi, isto é, deslocando-se do lirismo seco e contundente, objetivo e matemático, para um lirismo órfico e visionário, subjetivo e fantasmagórico, a descortinar atalhos e paisagens poéticos que podem lhe trazer emblemáticos poemas.
“Esta lua” é prova insofismável de que a criatividade poética permanece enigmática e inconceituável; de que técnicas, formas, motivos e temáticas somente se transformam em estereótipos na pena dos epígonos menores; de que o país da poesia, com a sua natural integridade, claridade e simetria, como diria o velho São Tomás de Aquino, possui uma geografia aberta, com inúmeros acidentes e sítios a serem descobertos e explorados. Um país onde a lua é a lua e não é a lua; “Esta lua”, aquela, aqueloutra, que vemos na pele sangrenta do céu ou, com a imaginação e a fantasia, no firmamento branco da página!
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OPINIÃO - 22/11/2024