João Pessoa, 12 de janeiro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Blues e Minotauro (Campina Grande: Editora Leve, 2021), do jovem Bruno Gaudêncio, é seu sexto livro de poemas publicado, dentro de uma tradição lírica que, parece, se impôs a si mesmo, dividindo o espaço da criação entre o contido dos processos de construção linguística e o apelo emotivo, e não somente literário, da expressão que se quer poética.
A cotejar com as coletâneas anteriores (O ofício de engordar as sombras, Acaso caos, O silêncio branco, O caos anterior ou uma antologia de si e A cicatriz que canta o incêndio da raiz), percebe-se que o poeta vai maturando o domínio do verso, ao mesmo tempo em que o modula sob a diretriz da densidade emocional se convertendo, aqui e ali, na mais explosiva emoção estética.
Poemas, como “Esta vida”, “Mudar de casa é como morrer”, “Epitáfio”, “Queda”, “Urubus e corvos”, “Teatro em ruínas”, “O peso” e “Setembro amarelo”, sem aderir a dispositivos retóricos artificiais e sem pensar a sua intrínseca realização apenas pela exploração retórica das palavras e dos arranjos estróficos, dentro de uma perspectiva meramente experimental da literatura, permitem aquele encontro essencial da linguagem com a poesia, do estado poético enquanto vivência subjetiva e humana, com o mistério do artefato verbal e artístico.
Dos citados, destaco “Epitáfio”, que assim se move: “um menino magro ∕ de dedos longos ∕ e versos curtos ∕ que chegou às alturas ∕ de si mesmo ∕ perdido à procura da música ∕ última sombra da esquina ∕ das ruas esquecidas”.
Observe-se, aqui, como em muitos outros textos de Bruno Gaudêncio, que o elemento existencial se mistura com a força metalinguística, tão nítida e tão sugestiva nesta ideia ou sensação de que a música se confunde com a poesia e que a poesia se distende como uma procura vital.
Aos transportes metapoéticos associam-se as alusões intertextuais pelas quais se introduzem vozes outras que compõem as afinidades eletivas do poeta e o situa, decerto, numa vertente transversal e difusa que abriga nomes, como Robert Creeley, Virgínia Woolf, Patti Smith, Mallarmé, D. H. Lawrense, Drummond e Belchior.
Henriques Rodrigues, que assina o prefácio da coletânea, acerta quando afirma, acostado a Emil Staiger, em Conceitos fundamentais da poética, que “a poesia não é o espaço”. Mas não é mesmo! Talvez seja o tempo, a memória, ou como leciona o teórico alemão, a recordação, ou seja, a operação transfiguradora que detém o poder de trazer de volta o mundo ao coração pela energia metafórica e redentora da palavra poética.
Esta viagem o jovem poeta, escritor e historiador, faz, e o faz com o equilíbrio necessário à fala poética, sobretudo quando não se deixa encantar pelas táticas vazias da sintaxe verbivocovisual que, não raro, transforma o poema, digo o poema poético, numa escaramuça de grafismos pedantes e pirotécnicos.
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As flores do meu jardim (João Pessoa: MVC∕Forma∕Gráfica Santa Marta, 2020), de Juca Pontes, (foto) com desenho de capa e ilustrações de Jô Cortez, traz uma nota estilística a que já estamos habituados na compleição individual de sua dicção poética, isto é, o poder de síntese vocabular e a singeleza verbal de versos curtos e contidos.
O traço novo, a compararmos esta coletânea com as anteriores (Ranhuras do corpo, Ciclo vegetal e Mar do olhar), reside precisamente no foco da percepção lírica, inteiramente voltada para o universo da fantasia e da imaginação, do humor e do ludismo, da beleza espontânea das coisas simples e banais que podem tocar o coração sensível dos que têm de 9 a 90 anos.
Penso assim porque não devo nem quero cair no logro da chamada “poesia infantil”, sobretudo quando se confunde esta poesia com didática ou moralismo, com platitudes verbais ou meras armadilhas sonoras, com pieguices sentimentais ou meros jogos de adivinhação.
Poesia, que é poesia de verdade, não carece de qualificativo. À parte certa gravidade ou certo hermetismo peculiares a determinadas vertentes poéticas, restritas, portanto, ao leitor adulto e culto, a poesia é quase sempre uma aventura do espírito, uma viagem fabulosa pelo reino encantado de novas descobertas, um mundo de fantasias feito de palavras, sons e cores, odores e sabores, com o poder de deslocar o olhar de quem a experimenta do real para o imaginário e do imaginário para o real, numa dinâmica circular que fertiliza a sensibilidade, a inteligência e a imaginação.
Quero crer que Juca Pontes aposta, sem medo, nessa diretriz do espanto e do entusiasmo, para em “Manu”, vê que “Manuela ∕ na janela ∕∕ guarda ∕ com ela ∕∕ a aurora ∕ das horas”; que “Kika” “Levava a vida a desfilar ∕ com seu estilo ∕ pitoco de ser”, ou que, já em clave de alto efeito estético, em “Horizonte”, “Caracóis ∕ são girassóis ∕∕ acordando ∕ o tempo: ∕∕ o mar ∕ dentro ∕∕ de outros ∕ ventos”.
Subdividida em múltiplas partes, a obra, para além de sua proposta nuclear, materializada no diverso temário de seus poemas, também se impõe como produto artístico, quer pelo design gráfico-visual, tipo de papel, tipo de letras, diagramação, alinhamento, cores; quer, sobretudo, pela riqueza das ilustrações que estabelecem, na liberdade da motivação criadora, um sugestivo diálogo com os textos verbais. Aqui, o talento de Jô Cortez se casa perfeitamente com o talento de Juca Pontes, o editor, o artista dos projetos gráficos e visuais dos livros que publica.
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OPINIÃO - 22/11/2024