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Titular em Letras Clássicas, professor de Língua Latina, Literatura Latina e Literatura Grega da UFPB. Escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras. E-mail: [email protected]

Cristo morreu por nós?

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publicado em 21/01/2022 ás 14h49

A nova onda das redes sociais é dizer que Cristo não morreu por nossos pecados, mas porque se insurgiu contra o sistema. É mais uma tentativa de querer transformar, a ferro e fogo, o Cristo em socialista, ou naquilo que alguns pretendem entender por socialista. Vamos por partes. Se não acreditamos em Cristo ou tomamos como premissa a sua não existência, qualquer argumentação é inútil. Se acreditamos que ele existiu, acreditando ou não na sua mensagem, o único Norte que pode as nossas argumentações é o que nos foi legado canonicamente, os Evangelhos de Matheus, Marcos, Lucas e João. Neles, principalmente em João, a doutrina é uma só: Cristo é filho de Deus, Luz da vida, Pão eterno, Água viva, Caminho para o Pai e, principalmente, O SEU REINO NÃO É DESTE MUNDO. Em nenhum momento, os evangelistas o apresentam como um ativista que deseja a troca de um sistema político por outro, que se presume melhor que o anterior e que, via de regra, mostra-se sempre pior, visto que a ambição humana é, por enquanto, infinita. As mensagens que se recebem do mundo espiritual só confirmam essa condição do Cristo. Deixemo-las de lado, contudo, pois se é difícil compreender o que está posto há dois mil anos, como compreender o que, dentro de uma visão estritamente material, é amplamente contestável?

Por outro lado, de que sistema se fala? É muito complexo definir o que é o “sistema” na época de Cristo. O sistema preconizado por Roma, na Judeia, não é o mesmo preconizado pelos judeus. Roma ocupava a região, como império poderoso, mantinha a ordem, fazia estradas, para a expansão do seu poder, levava água para onde podia, construía bibliotecas e geria uma burocracia administrativa, como a realização de censos, que, se por um lado ajudava no controle da região e proporcionava certo conforto a seus prepostos, trazia também benefícios para a população. Na época de Tibério (14-37), momento em que ocorreu a crucificação de Cristo, Roma não impedia o culto religioso local, desde que não interferisse no seu poder ou na manutenção da ordem pública. As leis civis impostas por Roma diferiam muito das leis judaicas, de origem mosaica, tendo como base o pentateuco. Ainda que o sistema religioso romano fosse forte, nessa época já se fazia a distinção entre as atividades da vida civil e as do mundo religioso, o que não era possível, no que diz respeito aos hebreus.

Já vemos, portanto, que definir sistema é bastante complexo. Podemos dizer, contudo, que a afirmação de que Cristo morreu por se insurgir contra o sistema contém alguma verdade. Não a “verdade” que tentam nos impingir de um Cristo ativista político, mas a verdade de que Cristo se insurgiu contra o sistema de vida material, qualquer que seja ele, sistema que aprisiona o homem na efemeridade de uma vida corpórea. Insurgiu-se contra um modo de vida que só leva o homem à exaltação da ambição, da ganância, do acúmulo de bens, da vaidade, do orgulho, da presunção, cultos que estão a um passo para a submissão e a exploração do outro. O que o Cristo defendia e ainda defende é o oposto a isso. É um sistema, se assim podemos chamar, espiritual, cujos fundamentos são a compreensão, a tolerância, a fraternidade, o respeito, a responsabilidade que cada um deve ter por suas escolhas. Em uma palavra, Ele nos ensina, sem querer nos impor, o Amor. Sim, sem querer nos impor, pois Amor não se impõe. Ou temos para dar ou não temos. Diferente dos outros sistemas materiais que nos impõem leis de fora para dentro e, por isso mesmo, nunca darão certo, a espiritualidade impõe apenas que nos conheçamos e passemos a nos amar. Isso depende apenas de nós, de nossa necessidade de aprendizagem enquanto estamos passando pela transitoriedade da materialidade.

Nasci e me criei em Jaguaribe, na tradição da Igreja Católica, cujo símbolo para mim era a Igreja do Rosário. Frequentei a Cruzada, o catecismo, fiz a Primeira Comunhão, assisti missas, encantei-me com todo o ritual místico, mas o que veio me dar a compreensão do Cristo não foi o catolicismo ou qualquer religião institucional, com sua estrutura hierárquica de poder. Foi a leitura e o esclarecimento proporcionados pelo Espiritismo que, como ser imperfeito que sou, tento acompanhar, sabendo da dificuldade que é percorrer esse caminho. O Cristo não se encontra no discurso vazio da retórica fácil. O Cristo está na ação de tentarmos compreender quem somos, para, assim, compreendermos o outro. Podemos até, se quisermos, entender metaforicamente “o morrer para salvar os outros”. Como tópica literária, isso está no Livro V da Eneida, quando o piloto Palinuro é escolhido para morrer, de modo que Eneias e os demais vivam e consigam chegar a seu destino – o Lácio. Não é novidade, como podemos ver. Como lição para a vida, essa metáfora se concretiza quando decidimos mudar as nossas atitudes e enxergar as nossas responsabilidades; quando começamos a considerar o quanto fomos prepotentes, despóticos, desrespeitosos, mal educados, grosseiros; quando decidimos realmente mudar, porque queremos ser uma nova pessoa. Nesse momento, nós morremos e fazemos isto por nós e pelos outros.

Comecei falando de nova onda nas redes sociais. Finalizo explicando que não passa disso, uma onda que, por mais frequente e violenta, acaba morrendo na praia, em espuma sorvida pela areia. Assim é a materialidade. A única coisa que permanece é espiritualidade, que nos conduz a uma evolução como seres que aqui estamos para aprender com as lições deixadas pelo Cristo. Apesar de que, como diz Alberto Almeida, médico espírita, se todos somos aprendizes, muitos de nós ainda se encontram na condição de repetentes. Eu, inclusive.

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