João Pessoa, 22 de janeiro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
(para Tatiana Rangel)
Acordei com o barulho dos trovões. Achei que ainda sonhava, o som parecia vir do jardim. Foi como se eu estivesse no sertão, ouvindo choros de crianças ou o som das águas correntes nas calçadas e estradas.
O tempo parecia pausado. Acordei com os restos de sonhos, mas eu não estava sonhando, eram os trovões e relâmpagos, no clarão do mar, que substituíram o sol que não apareceu.
Não fui caminhar, voltei para os lençóis agarrado com João Guimarães Rosa. Inventei de ler novamente o seu “Grande Sertão Veredas”, coisa da juventude, de antes, de ler dois livros ao mesmo tempo, mas eu não tenho tempo.
Procurei minha rota nas rotas sonoras. Veio o imêio de alguém, para que eu ouvisse Zeca Veloso cantando “A Rota do Indivíduo”. A mais bela interpretação da canção de Djavan.
O inesperado, digamos, um antigo encantamento – na voz de Zeca, a canção parece de ninar, ou a mais sublime voz de outro homem, onde está novamente a mãe, da canção dele, “Todo Homem”, que diz que todo homem precisa de uma mãe.
Em “Rota do Indivíduo”, a presença da mãe é latente – “Como mãe, como mãe que dorme olhando os filhos, com os olhos na estrada” Esse jovem artista, Zeca Veloso, não é um fenômeno, é a confirmação da natureza da família Veloso, como se cantasse um blues. A voz de alguém cantando perto daqui.
Essa canção “Rota do Indivíduo”, me lembra os que estão em Luanda ( sobretudo na periferia), os que mandam lembranças, os que nunca saíram pela estrada afora.
A “Rota do Indivíduo” é uma composição dos cantores e músicos Djavan e Orlando Morais feita para o 10º álbum de estúdio de Djavan: “Coisa de Acender” em 1992. A canção mescla a diversidade cultural e complexidade de Djavan com os versos sobre o cotidiano de Orlando.
“Mera luz que invade a tarde cinzenta/E algumas folhas deitam sobre a estrada/O frio é o agasalho que esquenta
O coração gelado quando venta/Movendo a água abandonada/Restos de sonhos sobre um novo dia/Amores nos vagões, vagões nos trilhos/Parece que quem parte é a ferrovia/Que mesmo não te vendo te vigia/Como mãe, como mãe/Que dorme olhando os filhos/Com os olhos na estrada/E no mistério solitário da penugem/Vê-se a vida correndo, parada/Como se não existisse chegada/
Na tarde distante, ferrugem ou nada”
A canção ganhou o subtítulo de Ferrugem.
Por entre lugares de amontoados espantos, eu que não canto, nem encanto, vejo num canto da sala, o rosto da minha mãe e seus antigos encantamentos. E é essa quietude que virá nos salvar depois, a mãe pegando na nossa mão quando somos pequenos, livrando de tudo, dos mais assustadores trovões e tremores, todo mal, amém. É tão bonito pensar assim.
Já não tenho a petulância da juventude, talvez a tagarelice dos velhos ou um silêncio que é uma espécie de música, que anos depois nos mostrará outra rota, outra vida, outro balanço, outra mãe, outro amor, nesse mais um dia de um impulsivo e maravilhoso som das estradas, ferrovias, vielas, que anunciam o céu azul.
Acordei com vontade tangentes, pegar os baldes cheios de água das biqueiras, e cair na estrada.
Eu sou Elza Soares
“Tô muito apaixonada por mim! Eu não sabia que eu era tão interessante, que eu era tão gostosa, que eu era tão maravilhosa. Se eu soubesse disso antes, tinha casado comigo”. (Elza Soares)
Foto de Zeca Veloso de Fernando Lemos, de Elza – divulgação
Kapetadas
1 – O absolutismo nunca morreu, só mudou de nome.
2 – O orgulho não mata mais, já estão mortos os orgulhosos.
3 – Som na caixa: “Às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz”, O Rappa
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OPINIÃO - 22/11/2024