João Pessoa, 02 de fevereiro de 2022 | --ºC / --ºC Dólar - Euro
Chego no condomínio e, na entrada de minha garagem, percebo um montículo suspeito. Depois de estacionar, vou averiguar de perto e as minhas suspeitas se confirmam: cocô de cachorro. O dono do animal infringiu pelo menos duas vezes a convenção do condomínio: garagem não é lugar de passear com cachorro e, tendo o animal feito as suas necessidades, não as apanhou. Preferiu fingir que não era de sua obrigação ou talvez confiou que ninguém visse. Fiz a reclamação para a documentação do síndico, de modo que se providencie a punição necessária a quem de direito. Nada contra os animais, tudo contra os donos de animais que não os tratam como devem. O animal está fazendo a sua parte; os donos, via de regra, estão se eximindo de suas obrigações.
Li, há algum tempo, uma reportagem sobre a maneira como Israel resolveu enfrentar o problema do cocô de cachorro: os donos são obrigados a fazer o teste de DNA de seus animais. Qualquer cocô encontrado pelas calçadas será analisado e o dono do cachorro, além da multa, pagará o teste realizado pelo governo. Ótima solução. Não sei se aplicável no Brasil, onde todas as boas ideias acabam dando errado, comprovando a Lei de Murphy: se houver uma única maneira de fazermos errado, nós faremos.
Dentre as ideias que não deram certo, está a rápida disseminação de que, no Brasil todos temos direito a tudo. Na cabeça de alguns o direito é absoluto e inquestionável. Nesse capítulo, ao que parece, tiramos nota 10, estamos para lá de instruídos. No capítulo das obrigações, no entanto, somos de uma ignorância e de um analfabetismo proverbiais. Enquanto não internalizarmos que direitos requerem obrigações, estas sempre em quantidade maior do que aquelas, não sairemos do canto ou encheremos as nossas varandas batendo panelas, para nada. Atitude fácil, cômoda, inútil e infratora do silêncio…
Há muito que os donos de animais ganharam o direito de ter cães em apartamentos, o que eu, particularmente, acho uma crueldade. Mas o direito está adquirido. O texto fala de animais de pequeno porte. O que seria para o brasileiro um animal de pequeno porte, se vejo, no condomínio, golden retriever, labradores e outros de tamanho semelhante? Posso assegurar aos meus três leitores que o cocô que vi não saiu das entranhas de um pug, de um poodle ou de um pinscher…
Chamemos a autoridade de um escritor medieval, que se tornou clássico, Gil Vicente, com o diálogo entre “Todo o Mundo” e “Ninguém” (Auto da Lusitânia), personagens ouvidos por Dinato e Belzebu, dois demônios, que fazem comentários sobre o que cada um busca. Tive a ousadia de, já faz algum tempo, parafraseá-lo, num epigrama, que segue abaixo:
TODO O MUNDO
Que esperas encontrar, na viagem que inicias?
NINGUÉM
Encontrar obrigação, preencher horas vazias.
NINGUÉM
E tu o que estás buscando, ao fim de nossas vias?
TODO O MUNDO
Vou buscando meus direitos, em meio às algaravias.
BELZEBU para DINATO
Toma nota, ó Dinato, do perfil dessa nação:
TODO O MUNDO quer direito, NINGUÉM quer obrigação.
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TURISMO - 19/12/2024